24 de abril de 2025

Vamos dar o nome certo para as coisas: golpe é golpe – 19/02/2025 – Opinião

A imagem mostra um homem em um ambiente de delegacia, com uma placa ao fundo que diz

No conto “O Segredo do Bonzo”, Machado de Assis fala de ficções. Os cidadãos da fictícia Fuchéu sofriam de uma espécie de doença que tornava o nariz das pessoas inchado e horrendo. Para se livrar da moléstia, bastava que se amputassem os narizes. O médico Diogo propôs a solução: os narizes amputados deveriam ser substituídos por “narizes metafísicos”. A história termina, enfim, com o dr. Diogo requisitadíssimo para muitas operações para o implante de narizes metafísicos pela população local. Pouco importava se os narizes não existissem na realidade, desde que uma ideia respaldada em uma conjectura complexa afirmasse sua existência.

Assim estamos: a tentativa de golpe no 8 de janeiro tomou a forma de um nariz que foi amputado. E no lugar dele estão colocando um nariz metafísico, chamando-o de baderna e insurgência civil. Muitos narizes também estão em construção, como a concessão de anistia, defendida até mesmo pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB). Isso sem contar as críticas acerca do tamanho dos narizes, quer dizer, do tamanho das penas aplicadas aos golpistas. Há experts de ocasião, como o próprio ministro da Defesa, José Mucio Monteiro, dizendo terem sido excessivas. Se algumas o foram, há caminhos processuais para as devidas e eventuais correções.

Até mesmo a tese de que os golpistas praticaram apenas uma conduta e estão respondendo por dois crimes vem sendo ventilada, com o que a própria lei seria inconstitucional porque, por mais estranho que pareça, teria incriminado a mesma conduta duas vezes. Nesses casos, a um duplo nariz metafísico.

Qual é o problema? Simples. O problema é que não se pode brigar com a história, chamando as coisas por outro nome. Já basta o negacionismo com as vacinas, praticado pelos mesmos que negam a democracia.

Veja-se: o golpe de 1964 já foi chamado de revolução. O golpismo cotidiano de Jair Bolsonaro era chamado de “atuação dentro das quatro linhas”. O artigo 142 da Constituição Federal foi chamado de “poder moderador” dos militares, defendido até por gente do direito. O acampamento de milhares de pessoas às portas dos quarteis clamando o golpe foi chamado pelos comandantes militares, em nota de 11 de novembro de 2022, de “atos respaldados na lei”, o que vitaminou o 8 de janeiro.

Já a anistia para golpistas, que é um oximoro antidemocrático —em nome da democracia, quer-se extingui-la—, agora é chamada de “ato para pacificação” de uma guerra que quase ocorreu. Até a antes adorada Lei da Ficha Limpa agora é “uma lei que serve só para perseguir”.

Eis a perigosa novilíngua. Estão trocando o nome das coisas. Pior: está se normalizando. Atentemo-nos. Chamemos as coisas pelo seu nome. Um nariz decepado não pode ser reposto metafisicamente, como queria o dr. Diogo.

É preciso que façamos uma vigília histórica acerca do sentido dos fatos e das palavras. Embora vivamos em tempos de narrativas, golpe continua sendo golpe e democracia continua sendo o que ela significa para qualquer pessoa com senso crítico.

É preciso dar um salto para fora do passado, atravessar o presente e saltar para dentro do futuro. Para podermos dizer algo como no filme argentino “1985”: “Nunca mais”. Para isso, os responsáveis pela tentativa de golpe —é este o nome da coisa— devem ser processados, julgados e punidos com rigor. Só assim atravessaremos esse período obscuro da história do país, em que em plena democracia surge uma tentativa de volta à ditadura.

O que não podemos é cair na armadilha da normalização da troca do significado das coisas. Não vivemos em Macondo, em que as coisas ainda não tinham nome e ainda se apontava com dedo. Hoje já sabemos o sentido das palavras “golpe”, “anistia” e “democracia”.

Nesse sentido, a denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, ao Supremo Tribunal Federal nesta terça-feira (18) contra Bolsonaro e os demais golpistas, dá o nome certo para as coisas. A punição também soma pontos na busca pela paz e pela democracia. No mínimo, serve como alerta para o futuro.

Nunca mais!

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Fonte ==> Folha SP

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