Não é preciso ir muito longe para imaginar os motivos que levaram a Globo a apostar numa nova versão de “Vale Tudo”, talvez a melhor novela já realizada pela emissora nos seus 60 anos. O enorme investimento levado ao ar nesta segunda-feira (31) foi feito com a expectativa de reverter uma curva de audiência descendente no horário mais nobre, o que atrapalha os negócios.
É uma tarefa hercúlea, ainda sem sinais expressivos de que dará certo. Para se ter uma ideia do tamanho da montanha a ser escalada, o capítulo inicial registrou o segundo índice mais baixo de uma estreia de novela das 21h em São Paulo.
A nova “Vale Tudo” expressa também a necessidade de oferecer um produto moderno, mas de apelo popular, que dialogue com os concorrentes das novelas brasileiras, os folhetins mexicanos, turcos e coreanos que estão disponíveis por toda parte, inclusive no próprio Globoplay. São esses “gringos”, e não “Beleza Fatal”, que a Globo precisa encarar.
A “Vale Tudo” original já teve três reprises, uma na própria Globo, em 1992, e duas no canal Viva, em 2010-11 e em 2018-19. Foi comercializada em formato de DVD em 2014. É oferecida no streaming na íntegra desde 2020. Se esse histórico não assustou quem tomou a decisão de promover um remake, é porque a trama dá sinais de que até hoje é objeto de fantasia e admiração.
E há ainda um motivo não menos importante por trás da releitura da trama de Gilberto Braga, e ela é de fundo cultural –eu ia escrever de fundo sociopolítico, mas fiquei com medo de assustar o leitor.
Refazer “Vale Tudo” é descrever um país que deu errado, sob o domínio de uma elite predadora e egoísta e com uma classe média baixa sem perspectivas, que não vê problemas em pisar no pescoço de quem estiver do seu lado para sobreviver.
Não me parece possível que a direção da Globo tenha tomado a decisão de refazer “Vale Tudo” sem levar em conta que as expectativas empresariais são indissociáveis das razões de caráter político e cultural. Se o que a novela tem a dizer for amenizado, o público irá embora.
Numa cena do primeiro capítulo, a secretária Aldeíde, então vivida por Lilia Cabral, leva para casa vários rolos de papel higiênico e sabonetes da firma onde trabalha. “Tenho que fazer estoque. Salário de secretária dura até o dia 10. Do dia 11 ao dia 30, tô de dieta”, justifica. Na nova versão, na pele de Karine Teles, a personagem levou pacotes de guardanapos para casa.
Manuela Dias manteve também a cena em que Maria de Fátima, chegando ao Rio, entende que foi enganada por um taxista e se vinga, causando um prejuízo ao motorista. Para tripudiar, ela deixa uma banana dentro de uma caixa de presente no carro.
Reginaldo Faria, que viveu o vilão Marco Aurélio, deu a entender numa entrevista a O Globo nesta semana que não compreendeu o impacto da clássica cena que interpretou, a da “banana” no jatinho, um escárnio com a situação de impunidade usufruída pela turma do colarinho branco. “Eu saía às ruas e via que as pessoas me aplaudiam, gostavam. Fiquei surpreso. Por que será? Fiquei imaginando se essas pessoas dariam também uma banana para o Brasil.” Evidentemente que dariam –e ainda dão.
Como observa a jornalista Ana Paula Gonçalves no livro “O Brasil Mostra a Sua Cara“, essa novela “se faz um clássico por fazer uma leitura atemporal do Brasil”.
No primeiro capítulo da versão original, Ivan, interpretado por Antônio Fagundes, descreve a um amigo o que falam de Marco Aurélio, seu futuro chefe: “Diz que Hitler perde”. Na nova versão, o empresário é “um carrasco”. Não alivie, Manuela Dias.
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Fonte ==> Folha SP