Vivemos uma era marcada pela velocidade e pela conveniência. Pedimos uma refeição com dois toques na tela e, minutos depois, ela chega à nossa porta. Mas o que quase nunca vemos – e poucos querem enxergar – é quem está do outro lado da entrega. A pesquisa Entregas da Fome, recém-lançada pela Ação da Cidadania em parceria com o Instituto Djanira, escancara uma realidade brutal: os entregadores de comida por aplicativo, que movem esse sistema, enfrentam níveis alarmantes de insegurança alimentar. Muitos têm fome enquanto entregam.
Segundo os dados, 13,5% dos trabalhadores entrevistados no Rio e em São Paulo vivem em insegurança alimentar moderada ou grave – ou seja, enfrentam redução drástica de alimentos ou fome propriamente dita. Mais da metade vive algum grau de insegurança alimentar, e boa parte tem filhos menores em casa. São pessoas negras, jovens, periféricas, que se arriscam diariamente nas ruas das maiores cidades do país para garantir o mínimo – e, mesmo assim, não conseguem garantir nem o básico dentro de casa.
Há um simbolismo perverso aqui: quem entrega comida, passa fome. E não se trata de uma metáfora. São trabalhadores que rodam até 10 horas por dia, sete dias por semana, sem direito a férias, proteção social, plano de saúde, ou garantias mínimas. 41% já sofreram acidentes de trabalho, e a imensa maioria precisa pagar do próprio bolso por celular, transporte e até mesmo por seguros, quando os têm. Apenas 27% contribuem para a Previdência – quase sempre com recursos próprios. É um sistema que lucra com a exploração e depois lava as mãos.
A informalidade, que no passado era uma exceção, virou regra com a “plataformização” do trabalho. As empresas se dizem intermediárias, mas controlam algoritmos, definem ganhos, impõem metas e punições. Quando interessa, são parceiras do progresso. Quando se cobra responsabilidade, viram apenas “tecnologia”. E tudo isso sob o véu da autonomia, como se o entregador fosse um empreendedor por escolha, e não por falta de alternativa. É o velho truque neoliberal da liberdade que só existe para quem pode escolher.

A pesquisa também mostra que os entregadores que usam bicicleta, especialmente os do Rio de Janeiro, são ainda mais vulneráveis. Entre os que vivem com até meio salário mínimo per capita, a insegurança alimentar grave passa de 40%. São jovens que passaram pela pandemia sem rede de proteção, expostos ao vírus, ao desemprego e à precarização. Muitos abandonaram os estudos, outros nunca chegaram a ter oportunidades reais. O discurso do “bico” e da “flexibilidade” só mascara uma desigualdade estrutural.
É preciso dizer com todas as letras: a fome desses trabalhadores é uma violação de direitos. Não é falha individual, não é escolha, não é falta de esforço. É consequência direta de um modelo econômico que naturaliza a exclusão e transforma direitos básicos em bônus esporádicos. Alimentação adequada é direito humano. E quando esse direito é negado a quem mantém o sistema funcionando, a sociedade inteira adoece.
Estamos diante de uma bomba social. Se não houver regulamentação urgente, proteção trabalhista real e políticas públicas robustas de segurança alimentar, veremos esse cenário se agravar ainda mais. A economia de aplicativos não pode ser uma terra sem lei. Nem o lucro pode ser construído sobre corpos exaustos, feridos – e famintos.
Quem leva comida não pode voltar pra casa de estômago vazio.
* Rodrigo ‘Kiko’ Afonso é diretor-executivo da Ação da Cidadania.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Fonte ==> Brasil de Fato