No artigo “Atualização do Código Civil e propostas de segurança jurídica” (28/4), publicado na Folha, a ilustre professora Rosa Maria Nery trouxe considerações em defesa do projeto de lei que pretende alterar mais de mil dispositivos do Código Civil. Defendeu a cisão das disciplinas para contratos civis, empresariais, de consumo e de trabalho, tanto quanto o emprego de “máximas de experiência” e cláusulas gerais.
Como a abertura ao debate técnico e a permeabilidade a ponderações são qualidades próprias de quem tem a envergadura da professora Rosa Maria Nery (tanto que a própria jurista generosamente as convocou no texto), ousamos aqui consolidar algumas.
No que toca à cisão da disciplina contratual, a divisão entre contratos civis, de consumo e de trabalho respeita ao próprio seccionamento das matérias civil, consumerista e trabalhista, e seus respectivos diplomas legais. O que aqui se critica, porém, é a distinção do projeto de lei 4/2025 entre contratos “paritários”, “simétricos”, “assimétricos”, “empresariais”, “por adesão” e “com dependência econômica”. Ela faz impossível saber qual o regime aplicável a dado contrato, por transformar, nas palavras de Marcelo Trindade (PUC-Rio), a disciplina hoje geral em sempre excepcional.
Em adição, estabelecer disciplinas gerais diversas para contratos civis e “empresariais” (ou “comerciais”, “mercantis”) só fazia sentido no século 19, quando vigente um Código Comercial, depois quase todo revogado pelo Código Civil de 2002. Foi em razão de a doutrina privatista haver diagnosticado a unidade obrigacional e, assim, uma teoria geral comum a contratos civis e comerciais, que houve a unificação via código de 2002.
Daí mostra-se falho o argumento de que o projeto não inova na sistemática do Código Civil, preservando-a. Ele inova inclusive sob o ponto de vista comparatista, pois essa distinção não encontra paralelo nem nos países que preservam um Código Comercial, como Colômbia, Chile, México e Peru —ao passo que, na Argentina, o recente Código Civil e Comercial fez esforço inverso, tornando unitária a disciplina geral dos contratos que antes era dividida.
Não bastasse isso, a própria definição de “contratos empresariais” causa inconsistências. Na “exposição de motivos” consta que devem ser tomados como tais apenas os firmados entre empresas, o que deixa de contemplar, por exemplo, os de compra e venda de participação societária; os entre empresas e entes estatais para atividades empresariais; ou, ainda, os de representação comercial, franquia, corretagem e outros que tenham pessoa física como parte. É falha a distinção de regimes contratuais baseada apenas na caracterização dos sujeitos contratantes.
Mudando de tema, há no texto da professora Nery também a defesa do emprego das “máximas da experiência”. O problema não é quanto à expressão e sua importância, e sim quanto à circunstância de ela não reportar a uma categoria do direito civil: trata-se de conceito que remete ao modo pelo qual um juiz deve apreciar as provas, referindo-se, assim, ao campo processual. E mesmo neste, autores como Michele Taruffo chamam a atenção para os perigos dos vieses contidos no olhar do juiz, quando de seu emprego.
Por último, quanto à defesa da inserção de cláusulas gerais, a crítica que se faz não é face à técnica em si, mas à pouca parcimônia empregada. Basta exemplificar com a superinvocação da boa-fé objetiva e da função social na proposta: a primeira, de quatro menções, passa a ter alusão proliferada; e a segunda sofre aumento de assombrosos 450% em suas referências.
A profusão de palavras indeterminadas como essas por si só já recomenda-se não legislar. Como disse o respeitado jurista português Menezes Cordeiro ao analisar recentemente o PL, “aproveitar reformas para fazer doutrina é inadequado”; do mesmo modo que é inadequado empregar em lei o que nem sequer é consensual entre os estudiosos.
Com essas ponderações, o que se quer é contribuir para um processo legislativo que tenha a profundidade que merece, própria de um projeto de novo Código Civil, e não a urgência açodada que, vez ou outra, se tem anunciado querer.
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Fonte ==> Folha SP