Rita Lee é uma das personalidades cuja morte recente mais gera repercussão audiovisual no Brasil. Dois filmes foram lançados neste mês que relembram o biênio da morte da revolucionária artista.
O primeiro deles é “Rita Lee: Mania de Você”, de Guido Goldberg, lançado no último 8 de maio no canal de streaming HBO Max. O documentário é uma produção relativamente simples, com imagens de arquivo e entrevistas com familiares num formato linear.
Sem grandes inovações narrativas, o documentário é mesmo assim muito bem feito e conduzido. Emocionante em vários momentos. Filmado pouco antes da morte da cantora, mas sem a presença desta, o documentário tem um grande trunfo. Uma carta póstuma e inédita de Rita é lida por seu marido e filhos pela primeira vez após sua morte.
O outro filme, disponível nos cinemas desde o último dia 22, é “Ritas”, de Oswaldo Santana. Menos tocante que o anterior, “Ritas” é narrado com imagens de arquivo que alternam-se com cenas caseiras de uma cantora aposentada, refletindo sobre o feminismo no rock’n’roll nacional e sobre os embates com a moral e os costumes durante décadas de carreira.
Apesar de algumas cenas repetidas, os documentários se complementam. E provam que é possível contar uma mesma vida de diferentes perspectivas, por mais que ambos tenham focado quase exclusivamente a carreira de Rita pós-Mutantes.
Esse enfoque causou indignação no jornalista André Barcinski, que criticou “Rita Lee: mania de você”: “Acho que todo mundo tem o direito de fazer o filme que quiser, só não chame de ‘documentário’”, escreveu.
Por sua vez, o documentário “Ritas” não ignora completamente a carreira com os Mutantes. Há algumas falas da cantora colhidas em arquivo em que ela comenta as tretas com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Mas não se dimensiona corretamente o peso dos Mutantes na história da música brasileira nem na trajetória de Rita.
Mais grave, a meu ver, é a exclusão sistemática que ambos filmes fazem da tropicália na biografia de artista. Nesse aspecto, “Ritas” também é menos radical, visto que há cenas em que ela comenta sobre como Caetano e Gil a “ensinaram” a fazer música brasileira. Mas só.
Nenhum dos dois filmes mostram que os Mutantes foram personagens centrais do movimento, braço motor do rock entre os tropicalistas. Rita e os irmãos Baptista estiveram presentes na capa do histórico disco “Panis Et Circenses”, LP manifesto de 1968, considerado por muitos a mais importante obra da música popular brasileira. Mas nada disso é sequer mencionado nos documentários.
Quando lançaram o disco “Tropicália 2” em 1993, comemorando 25 anos do movimento, Caetano e Gil não convidaram nenhum outro tropicalista. Em 2018 ninguém mais se lembrou de celebrar os 50 anos do movimento em disco.
Agora, os documentários de Rita Lee voluntariamente escolhem calar-se sobre a importância da artista na tropicália. Gil até aparece em “Mania de Você”, mais como um admirador de Rita do que como formulador de um movimento central em sua biografia. É pouco.
A trajetória de Rita Lee contada nos dias de hoje parece só fazer sentido ao atender aos interesses identitários atuais, desejos de uma heroína feminista. Em nome do empoderamento feminino, ambos documentários diminuíram a tropicália.
Se uma vida pode ser abordada de diversas formas, ainda há espaço para se contar outras vidas de Rita Lee. Foi na tropicália que as questões de gênero foram seminalmente formuladas, junto com diversos outros temas hoje esquecidos como revolução, folclorismo, cosmopolitismo, nacionalismo, deboche como arma estética, arte de vanguarda, pós-modernidade, indústria cultural, cultura popular, a arte massiva e vários outros temas.
A tropicália era maior do que os hiperfocados interesses atuais. E Rita Lee era tudo isso também.
Fonte ==> Folha SP