Recentes visitas que realizei a museus na América do Norte me fizeram recordar um tema que há muito eu havia esquecido. Esses museus relatavam que a chegada dos primeiros seres humanos às Américas teria ocorrido há cerca de 15 mil anos, provenientes da Ásia, por meio do etreito de Bering, no extremo norte. Tal teoria, contudo, não consegue explicar evidências de ocupações humanas anteriores àquele período, algo que uma cientista dedicou grande parte de sua vida a documentar.
Niède Guidon, falecida no último dia 4, aos 92 anos, revolucionou o conhecimento sobre a ocupação das Américas. A arqueóloga e paleontóloga, paulista de origem francesa, formou-se na USP e concluiu o doutorado na Universidade de Paris. Quando soube da existência de pinturas rupestres na região da Serra da Capivara, no Piauí, direcionou seus interesses investigativos para o local, a partir da década de 1970.
Sua principal contribuição consistiu na descoberta e análise de vestígios arqueológicos que indicam a presença humana nas Américas há mais de 50 mil anos, desafiando as teorias tradicionais sobre o povoamento do continente. Seus achados sustentaram a hipótese de uma ocupação vinda da África, pelo Atlântico Sul, aproveitando as correntes marítimas.
Relata-se que a própria Niède inicialmente desconfiou das primeiras datações obtidas em seus achados arqueológicos. Sua determinação e rigor científico foram decisivos para prosseguir com as investigações, mesmo sem encontrar, a princípio, respaldo na comunidade científica.
Contestar a teoria hegemônica norte-americana certamente demandou grande coragem. A resistência por parte da comunidade científica foi expressiva. Como ocorre em diversas áreas, o fato de Niède ser uma mulher cientista, atuando em meados do século 20, certamente não facilitou a aceitação de seu trabalho em um ambiente predominantemente masculino. Cabe questionar o quanto esse cenário se modificou ao longo das décadas.
Niède também desempenhou papel fundamental na criação e preservação do Parque Nacional Serra da Capivara, promovendo a proteção do patrimônio cultural e natural, bem como o desenvolvimento científico e turístico da região.
Recordo que a primeira vez que ouvi sobre Niède e seu trabalho foi ainda na escola. Havia no meu livro de história, correspondente ao atual 6º ano do ensino fundamental, um box que destacava sua inovação científica, acompanhado por uma fotografia da pesquisadora entre as pinturas rupestres da Serra da Capivara. Aquela imagem me marcou: uma mulher séria, que enfrentou teorias amplamente aceitas.
Niède Guidon deixa um legado incontestável à ciência. Os desdobramentos de suas pesquisas certamente se estenderão por um longo período, revelando novos segredos sobre a história humana. Contudo, sua contribuição vai além do âmbito científico: está também no poder da representatividade, ao inspirar meninas a compreenderem que seu lugar é igualmente na ciência, no descobrimento e na formulação de novas teorias que expliquem o mundo.
A coragem de contestar consensos é vital para o desenvolvimento do conhecimento em todas as áreas. Nisso, Niède foi mestra.
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Fonte ==> Folha SP