A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não é —nem nunca foi— um direito absoluto. No Brasil, esse princípio é claro: não se pode invocar a liberdade de expressão como escudo para práticas que ferem a dignidade humana ou alimentam o preconceito e a exclusão. Por isso, sim, é constitucional a condenação de um humorista por falas depreciativas dirigidas a grupos vulneráveis.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já delimitou os contornos dessa liberdade, inclusive ao julgar casos emblemáticos como o do editor Siegfried Ellwanger (condenado por crime de incitação ao racismo), reafirmando que há, sim, limites constitucionais para o discurso, ainda que disfarçado de humor.
Defender que humoristas, jornalistas, comentaristas ou qualquer outra categoria profissional tenham imunidade para ferir direitos fundamentais é desconsiderar a Constituição. O humor, como forma de expressão artística, deve ser preservado. No entanto, não pode ser instrumento para normalizar o racismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo ou outras formas de discriminação. É exatamente este o ponto da decisão judicial que condenou a oito anos de prisão o humorista Leo Lins por falas ofensivas, travestidas de piadas, contra pessoas negras, com deficiência e contra a população LGBTQIA+.
A decisão está em consonância com os princípios da Constituição de 1988, especialmente a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a vedação ao racismo e a todas as formas de discriminação. O uso de características imutáveis —como cor da pele, identidade de gênero, traços físicos ou condições de deficiência— como motivo de escárnio ou chacota não é liberdade de expressão: é violência simbólica. E, como tal, merece resposta institucional e jurídica.
O STF foi categórico ao analisar o caso do editor Siegfried Ellwanger: a liberdade de expressão não protege os discursos de ódio. Na ocasião, o tribunal reconheceu que o racismo, inclusive o dirigido à população judaica, pode se manifestar por meio da palavra, e que a proteção constitucional à liberdade de expressão não se estende à incitação ao preconceito.
O que está em debate, portanto, não é a censura, mas sim a responsabilidade. A liberdade de expressão e a responsabilidade social são indissociáveis no Estado democrático de Direito. O humor, como qualquer outra linguagem, deve se adaptar aos valores de uma sociedade plural e democrática. Quando um humorista ataca pessoas em situação de vulnerabilidade para gerar riso, ele reafirma estruturas de opressão e inferioriza grupos que historicamente já enfrentam exclusão.
A Carta não protege o direito de ofender. A sátira política, o deboche sobre costumes ou críticas sociais são legítimos e desejáveis. Mas não há amparo constitucional para rir à custa da dor alheia. A decisão judicial contra o humorista não representa uma limitação arbitrária à liberdade artística. Representa, sim, a proteção de um bem maior: a convivência digna entre diferentes.
É preciso também romper com o mito de que estamos falando da proteção de “minorias”. Negros não são minoria no Brasil; tampouco são minoria as mulheres ou as pessoas LGBTQIA+, se considerarmos sua presença na população. São, isso sim, grupos vulnerabilizados por estruturas históricas de exclusão, preconceito e violência. E é justamente por isso que o Estado tem o dever de protegê-los, inclusive no campo simbólico.
Tratar a liberdade de expressão como ilimitada é ignorar a Lei Maior. Dizer que o humor está acima da lei é normalizar a violência. A Constituição de 1988 não compactua com isso —e a Justiça brasileira também não deve compactuar. Defender os limites da liberdade de expressão é, antes de tudo, defender a democracia e os direitos de todos.
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Fonte ==> Folha SP