Zumbis infectados, gregos encrencados – 07/06/2025 – Vinicius Mota

Pedro Pascal e Bella Ramsey em cena da série

Empacado na costa de Áulis à testa do maior exército já reunido pelos gregos, Agamenão remói um dilema. Os sacerdotes afiançam que o vento não voltará a soprar na direção de Troia, o destino da esquadra, enquanto a oposição da deusa Ártemis não for contornada por um sacrifício muito especial.

A vida de sua filha Ifigênia era exigida pela divindade das selvas, que tinha contas a acertar com o rei. O que ele deve fazer? Imolar Ifigênia e favorecer a sagrada missão de castigar os raptores de Helena? Poupar a filha com Clitemnestra, arruinar a empreitada e desgraçar seu nome? Na vida costuma haver mais de duas opções. Na poesia, não.

Sinuca parecida desafia Joel, protagonista do videogame “The Last of Us”, agora também série televisiva. Ellie, protegida como filha por Joel, por ser imune a um fungo que transforma pessoas em devoradoras de gente é a única esperança de salvar a humanidade.

A encruzilhada trágica de Agamenão se repete no mundo apocalíptico porque —malditas dualidades poéticas— não se pode desenvolver a cura para o mal pandêmico e garantir a vida de Ellie ao mesmo tempo. Joel e Agamenão farão as suas escolhas entre a causa coletiva e o amor filial. Ambos vão arcar com as consequências das suas opções.

Os gregos navegarão até Troia e arrasarão a cidade governada por Príamo após um longo cerco. Mas ao voltar para casa o sangue do grande general da aventura correrá como paga pelo seu arbítrio em Áulis. Clitemnestra e seu amante, Egisto, matam Agamenão para vingar Ifigênia. Depois Orestes, auxiliado pela irmã Electra, trucida a mãe como desforra pelo assassinato do pai.

Um mecanismo cego de retribuições também se segue à escolha de Joel. Esse moto-contínuo sanguinário vai parar?

No caso grego, o célebre julgamento de Orestes coloca uma trava na carnificina. Para o desgosto das Erínias, inspiradoras da vingança, o matricídio não será punido com mais uma morte. Prevalecerá um senso superior de justiça.

Em “The Last of Us”, a série, o espectador que assistiu ao último episódio da segunda temporada não sabe se uma porta para fora da espiral da matança será aberta. Quem jogou o jogo sabe.

Meu filho, fã do game mas nem tanto da adaptação para TV, me diz que o barato na história criada por Neil Druckmann é que ela dilui e relativiza as fronteiras entre personagens adoráveis e detestáveis. O jogador na pele de Joel acaba compreendendo as razões pelas quais esse protagonista age, mesmo quando toma decisões problemáticas e violentas. O efeito se repete, após um estranhamento inicial, quando se joga como Abby, inimiga mortal de Joel.

As boas narrativas em tese poderiam tomar tantos rumos quanto abriga a nossa vasta imaginação, mas na prática se comportam como um encadeamento necessário entre ações. Nada parece surgir por acaso. Bem explorados, o mundo dos mitos gregos, o dos zumbis e outros podem estimular nos leitores, espectadores e jogadores essa prazerosa sensação de tatear a riqueza e a maleabilidade da alma humana.

Quem ama também mata, ou pelo menos é capaz disso. A brutalidade não está tão distante assim do afeto. A glória se ergue sobre ignomínias. A vitória de hoje recruta a derrota de amanhã. O território hostil, em que a sobrevivência está sob constante ameaça, revela traços horrendos e sublimes dos viajantes que cruzam os seus caminhos.

É assim com Joel, Ellie e Abby em “The Last of Us” e também com pai e filho em “A Estrada”, de Cormac McCarthy. O semiárido dos retirantes de João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos funciona de maneira parecida. O sertão literário pode ser apocalíptico. Às vezes um fio de esperança se insinua em meio à sucessão de desgraças. Às vezes o raiar do dia traz a perspectiva de um novo ciclo de sofrimentos.



Fonte ==> Folha SP

Leia Também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *