Embora tenha havido melhora em importantes indicadores de violência nos últimos anos, conforme relatado pela recente divulgação do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Ipea, vivemos um cenário muito grave de medo e insegurança derivado, em grande medida, da ação de organizações criminosas como o PCC, o Comando Vermelho e as milícias. O crime tem se expandido, infiltrando-se de forma cada vez mais expressiva na política, nas instituições e na economia.
E, o mais grave, enquanto as organizações criminosas operam de maneira interestadual e transnacional, explorando e dominando territórios e mercados legais e ilegais, o Estado ainda enfrenta dificuldades em se estruturar adequadamente para lidar com essas novas dinâmicas da criminalidade, atuando não poucas vezes de modo descoordenado e desarticulado.
Há uma enorme desarticulação federativa e, sobretudo, uma baixa capacidade estatal de coordenar e conectar diferentes sistemas e redes de políticas públicas, como saúde, educação, assistência social ou polícias. Sem coordenação, a regulação de mercados legais suscetíveis à ação do crime organizado pode servir, ao fim e ao cabo, como estímulo à economia do crime.
Esse parece ser o caso da disputa que está sendo travada no Supremo Tribunal Federal em torno da validade da resolução 14/2012 da Anvisa. Segundo essa resolução, o uso de aditivos nos produtos fumígenos derivados do tabaco seria proibido, forçando a adoção de novas formas de fabricação/composição de produtos derivados do tabaco comercializados legalmente no Brasil.
Lida isoladamente, a resolução da Anvisa guardaria coerência com as políticas de saúde pública adotadas ao longo das últimas décadas e poderia, em uma primeira leitura, ser vista como uma decisão técnica e institucional que encontraria respaldo nas evidências dos efeitos do fumo na saúde dos indivíduos.
Todavia, em uma leitura mais contextualizada, a norma da agência desconsidera variáveis que o STF terá que observar em sua decisão, a exemplo da provável maior migração de consumidores para o mercado ilícito, dominado por algumas das principais organizações criminosas atuantes no Brasil.
Isso porque, segundo outro estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, intitulado “Follow The Products: rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil”, vários são os indicadores de crescimento do envolvimento de organizações criminosas nacionais e transnacionais na cadeia econômica do tabaco, cuja estimativa é de que 40% do consumo nacional de cigarros já seja de produtos ilegais.
Ou seja, os efeitos da resolução da Anvisa sobre esse setor formal da indústria incluem o risco de as organizações criminosas ampliarem seus domínios na cadeia econômica do tabaco. E isso deve ocorrer, seja por hábitos de consumo já consolidados ou, o mais provável, pelo possível aumento da diferença de preço entre os cigarros legais e os ilegais. E é válido lembrar que, além desses fatores, os cigarros ilegais já não têm nenhum controle de qualidade e não estarão sob o alcance da nova norma.
Em resumo, na tutela coletiva dos direitos fundamentais à saúde e à segurança, entre outros, é preciso um ponto de equilíbrio. E é nessa frente que o STF poderá atuar. A decisão sobre a constitucionalidade e legalidade da resolução editada em 2012 e até agora “sub judice” deve contemplar a análise de evidências não apenas da saúde pública, mas também dos efeitos que ela poderá ter na expansão do mercado ilícito e do poder das organizações criminosas.
Afinal, o enfrentamento efetivo do crime organizado e das consequências por ele causadas na sociedade brasileira exigem a articulação de múltiplas agências e instituições públicas e privadas, não apenas das polícias.
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Fonte ==> Folha SP