As montadoras chinesas, lideradas pela BYD, expandem rapidamente sua atuação no Brasil por meio de importações e implantação de fábricas, embora os projetos da BYD e GWM enfrentem atrasos significativos. A situação já preocupa a indústria automotiva nacional, que teme efeitos no emprego, investimentos e sustentabilidade do setor, pressionando o governo federal a revisar as tarifas de importação. Paralelamente, na China, a BYD e concorrentes enfrentam uma guerra de preços que põe em dúvida a saúde financeira dos negócios.
A ascensão meteórica da BYD no mercado brasileiro
A BYD apresentou nesta terça (1º), em Camaçari, na região metropolitana de Salvador (BA), os dois primeiros carros produzidos na fase de testes da linha de produção; o Dolphin Mini e o Song. Inicialmente, os modelos serão produzidos em escala comercial, no esquema SKD. Nesse sistema, os veículos chegam com a carroceria já soldada e pintada, e os demais componentes são agregados localmente, sendo que parte deles também é importada.
A montadora ainda não tem as licenças para operar, mas espera consegui-las nas próximas semanas para poder sair da fase de testes e entrar em operação na unidade onde até 2021 funcionava a fábrica da montadora norte-americana Ford. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), disse que fará esforços para acelerar a concessão da documentação necessária.
A expectativa da montadora é reduzir as importações de carros à medida em que conseguir ampliar as operações na Bahia. Mirando nisso, anunciou a abertura de mais 3 mil postos de trabalho na fábrica, que será a maior do grupo fora da Ásia. Atualmente, são 800 trabalhadores.
A BYD está investindo R$ 5,5 bilhões na unidade que, além de atender à demanda brasileira, poderá ser uma plataforma de exportações para as Américas. Quando estiver totalmente concluída, terá capacidade para fabricar 600 mil veículos ao ano.
A vice-presidente global da BYD, Stella Li, destacou que a unidade será uma das mais modernas da multinacional, usando as tecnologias mais modernas para a produção de carros elétricos e híbridos.
Ainda não há uma data prevista para a inauguração da unidade, mas Rodrigues deixou claro que quer fazer da oportunidade um palco para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está com baixa popularidade no Brasil e está desprestigiado no exterior.
A BYD chegou ao Brasil há uma década e tem fábricas de montagem de chassis de ônibus 100% elétricos e de módulos fotovoltaicos em Campinas. Também produz baterias de fosfato de ferro-lítio no Polo Industrial de Manaus (AM). Sua presença no mercado de automóveis começou há três anos. A empresa tem ambição notável e foco implacável em pesquisa e desenvolvimento — só na sede mundial, em Shenzhen, na China, são cerca de 120 mil engenheiros.
A montadora já consolidou sua presença no mercado brasileiro. Segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), a BYD conseguiu obter 5,42% do mercado varejista de automóveis novos no ano, superando marcas estabelecidas há décadas no Brasil, como Renault, Nissan, Peugeot e Citroën.
Entre os 50 carros mais emplacados nos cinco primeiros meses do ano, quatro são da marca chinesa: Song (19.°), Dolphin Mini (25.°), King (38.°) e Dolphin (40°).
A BYD já detém quase um quarto do mercado de sedãs médios — o King está em segundo lugar e o Seal, em quarto — e 9% no segmento de hatches pequenos, com o Dolphin Mini (5.°) e o Dolphin (8.°). Entre os SUVs, principal categoria no mercado brasileiro de automóveis, a participação é menor: pouco mais de 4%, com o Song ocupando a 12.ª posição e o Yuan, a 29.ª.
Domínio no segmento de eletrificados
A presença da BYD é dominante entre os automóveis eletrificados (híbridos e elétricos), cujos emplacamentos aumentaram 42,6% no comparativo entre os cinco primeiros meses de 2024 e 2025. A empresa lidera os dois segmentos, com posição confortável entre os elétricos, onde detém 77% do mercado.
Por trás dessa forte expansão, há uma estratégia robusta de importação, com frota crescente de navios de carga. No fim de maio, o Porto de Itajaí (SC) recebeu o BYD Shenzhen, maior navio de transporte de veículos do mundo, que desembarcou 7.292 veículos elétricos — a maior operação do tipo já registrada no país.
A remessa foi a quarta para o Brasil somente neste ano, totalizando cerca de 22 mil veículos. A expectativa é de que as importações de veículos fabricados na China cresçam quase 40% neste ano, atingindo cerca de 200 mil unidades ou 8% das vendas totais de veículos leves no Brasil.
Outra estratégia importante foi o investimento em marketing. A subsidiária brasileira precisou convencer a matriz chinesa, que não anunciava em TV aberta há oito anos, da necessidade dessa estratégia para apresentar uma marca desconhecida e superar a percepção histórica negativa de produtos chineses no país.
O alerta da indústria nacional: produção cai enquanto importados disparam
A ofensiva chinesa desperta forte preocupação da indústria automotiva estabelecida no Brasil. Igor Calvet, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), não esconde a preocupação com o aumento das importações.
A entidade aponta desequilíbrio entre o crescimento do mercado e a estagnação da produção local. Enquanto o mercado brasileiro cresceu mais de 8% em maio comparado a abril e as exportações avançaram em mais de 11%, a produção no país registrou queda de quase 6%.
Segundo Calvet, 54% do avanço foi absorvido pelos importados. Um dos mercados que mais preocupa é o de veículos leves, onde a indústria brasileira tem maior presença.
O volume de veículos importados que entraram no Brasil de janeiro a maio de 2025 foi de quase 190 mil unidades, superando em mais de 30 mil unidades o total do mesmo período do ano anterior. “Equivale à produção de uma fábrica média, com geração de pelo menos 5 mil empregos”, alerta Calvet.
Juros altos e inadimplência pressionam o mercado
Além do avanço chinês, outro motivo de preocupação é a situação da economia brasileira. A taxa Selic está em 15% ao ano e deve permanecer elevada por um bom tempo. A inadimplência na venda de veículos também cresce. Segundo o Banco Central, ela atingiu 3,3% entre empresas em maio — o nível mais elevado desde agosto de 2017. Entre pessoas físicas, já é de 5,16%, a mais alta desde dezembro de 2023.
O impacto já é visível no mercado de caminhões pesados, mais dependente de financiamentos, que registrou queda de 14,1% nas vendas de janeiro a maio. Frotistas estariam adiando a renovação de suas frotas devido aos juros elevados.
A batalha das tarifas para os carros chineses no Brasil
Um dos pontos mais sensíveis nesse cenário é a política tarifária para veículos importados. A BYD encaminhou ao governo federal pedido de redução do Imposto de Importação para carros semidesmontados, conhecidos como SKD (semi knocked down).
Nesse sistema, os veículos chegam com a carroceria já soldada e pintada, e os demais componentes são agregados localmente, sendo que parte deles também é importada. Neste momento, toda a produção da BYD na fábrica de Camaçari, na Bahia, ocorre por meio desse sistema.
A BYD argumenta que sua fábrica na Bahia estaria em desvantagem, pois montadoras estabelecidas há mais tempo já usufruíram de incentivos fiscais na região por muitos anos.
A solicitação desencadeou forte mobilização da Anfavea, que não tem a montadora chinesa como associada. A BYD é filiada à Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (Abeifa), que representa marcas internacionais, importadoras e/ou com produção local que operam no Brasil.
A reação da Anfavea e a defesa da indústria local
A Anfavea, com apoio da indústria de autopeças, posiciona-se contra qualquer redução do tributo. Os argumentos destacam a existência de um robusto parque fabril de autopeças e veículos já instalado no país, a quantidade de empregos envolvidos na cadeia automotiva e os elevados programas de investimentos em curso.
Calvet reconhece que iniciar a produção local por meio de veículos semidesmontados é normal, mas insiste que “é preciso pagar imposto por isso”.
Representantes da indústria afirmam que a China aproveita a barreira tarifária temporariamente menor para inundar o mercado brasileiro com seus produtos, em vez de investir na construção de fábricas e criação de empregos locais.
A indústria brasileira pressiona o governo para antecipar o aumento do imposto de importação de 10% para 35% nos carros elétricos, medida originalmente prevista para meados de 2026 – uma nova fase do cronograma de elevação entrou em vigor nesta terça (1.º), com alíquotas chegando a 18% para elétricos, 20% para híbridos e 25% para híbridos plug-in.
O Ministério do Desenvolvimento confirmou à Reuters que o pedido da Anfavea está sendo analisado, justificando o cronograma gradual para a retomada das tarifas como forma de permitir que as empresas continuem seus planos de desenvolvimento e respeitem a maturidade da produção nacional.
A crítica da indústria se estende à própria concepção da redução do imposto de importação para veículos híbridos e elétricos. Especialistas indicam que esse benefício é injustificado, pois são veículos de faixas de preço elevadas, destinados a consumidores que, em tese, não necessitam de subsídios fiscais.
O incentivo, assim, converte-se em “lucro fácil” para as montadoras chinesas, que podem praticar preços mais altos no Brasil do que na China, enquanto tiram fatia lucrativa do mercado das fabricantes nacionais.
Investimentos chineses: promessas sob escrutínio e atrasos
O avanço dos investimentos das montadoras chinesas no Brasil ocorre em ritmo menor do que o esperado pelo governo. Apesar de ter aplaudido, em 2023, o plano da BYD de adquirir a antiga fábrica da Ford em Camaçari para produzir veículos, o cronograma original sofre atrasos.
Uma investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) sobre abusos trabalhistas no canteiro de obras adiou o início da produção “totalmente funcional” para dezembro de 2026. O órgão pediu multa de R$ 257 milhões.
Outra montadora chinesa, a GWM, também enfrenta atrasos. O plano de montar carros na antiga fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis, interior de São Paulo, foi adiado em mais de um ano.
O governo espera que a operação da GWM, que adquiriu a fábrica em 2021, comece ainda este ano, com a produção do modelo Haval H6. A GWM diz estar em negociações com cerca de 100 fornecedores brasileiros para estabelecer contratos.
A BYD anunciou a qualificação de 106 empresas instaladas no Brasil para fornecer peças para a fábrica na Bahia. A primeira delas a ser homologada é a Continental Pneus, que tem uma unidade ao lado da montadora. “Estamos desenvolvendo fornecedores locais”, disse o vice-presidente da BYD Brasil, Alexandre Baldy.
O alerta global: “guerra de preços” na China questiona solidez do modelo
A agressividade da BYD no Brasil e a pressão sobre os preços refletem uma realidade que afeta a indústria automotiva na China: uma guerra de preços insustentável no mercado de veículos elétricos.
Wei Jianjun, bilionário chinês e presidente da GWM, disparou um alerta em maio à Sina Finance, portal chinês de notícias financeiras. Segundo ele, a indústria automotiva chinesa está “doente e à beira do caos”, inflando números com vendas falsas, encobrindo prejuízos crescentes e cortando padrões de qualidade.
Ele comparou a situação ao colapso da Evergrande, a gigante incorporadora imobiliária que foi à falência devido a balanços inflados e dívidas bilionárias, alertando que a “Evergrande da indústria automotiva já existe, mas ainda não explodiu”.
O mercado chinês, o maior do mundo em volume, desacelerou, enquanto a concorrência entre os fabricantes superou a capacidade de absorção dos consumidores. Segundo a Autodata, portal especializado em notícias do setor automobilístico, o resultado é uma “guerra de preços sem precedentes”, com descontos abusivos e práticas heterodoxas para inflar vendas e obter incentivos governamentais.
O governo chinês já detectou o problema e tenta intervir. O Ministério da Indústria alertou que “não há vencedores na guerra de preços” e prometeu combater a concorrência predatória, que prejudica o investimento em pesquisa e desenvolvimento e pode comprometer a segurança.
O People’s Daily, jornal oficial do Partido Comunista Chinês, também criticou produtos de baixo preço e baixa qualidade, que “podem prejudicar a reputação dos produtos ‘feitos na China'”. Pequim chegou a convocar líderes do setor para negociações, pedindo que não vendessem carros abaixo do custo ou oferecessem descontos irracionais.
A situação financeira das montadoras chinesas é preocupante. Os lucros divulgados estão alavancados por subsídios e alto endividamento. O grau de endividamento varia entre 60% e 80% de seus ativos, e os empréstimos ao setor automotivo na China alcançaram US$ 417,8 bilhões em 2024.
A maioria das empresas tem menos de três meses de caixa para honrar seus compromissos, e uma queda nas vendas poderia levar a um colapso rápido.
A bolha, já sentida no mercado financeiro com a queda das ações dos principais fabricantes chineses, é alimentada pela redução de subsídios, aponta a revista The Economist. Em 2023, o governo federal chinês cortou os incentivos à compra de eletrificados, levando à falência mais de 400 empresas ligadas à cadeia de elétricos na China, incluindo 70 fabricantes de autopeças.
Problemas na China empurram montadoras para fora do país
A pressão do mercado interno empurra as montadoras chinesas para o exterior. A BYD, por exemplo, planeja vender mais da metade de seus carros em mercados como América Latina e Europa até 2030.
No entanto, governos ao redor do mundo estão impondo barreiras alfandegárias cada vez maiores, especialmente na Europa (com tarifas de 45,3%) e nos Estados Unidos (com tarifas de mais de 100%).
Mesmo em países como Tailândia e Brasil, as condições se deterioram com o aumento do imposto de importação e a redução de benefícios. Stella Li, vice-presidente global da BYD, admitiu à Bloomberg que a guerra de preços é insustentável, mas não indicou que a empresa reduziria os descontos agressivos. Ela afirmou, contudo, que a BYD continuará a investir pesadamente fora da China, com foco na Europa, onde já superou a Tesla em vendas.
*O jornalista viajou a convite da BYD.
Fonte ==> Gazeta