A morte em proparoxítonas – 05/07/2025 – Ruy Castro

A imagem mostra dois homens em um palco, ambos usando camisas xadrez e chapéus. O homem à esquerda está segurando um violão e sorrindo, enquanto o homem à direita também sorri e levanta a mão em um gesto de saudação. Ambos estão em frente a microfones, com um fundo que sugere um ambiente de apresentação musical. O piso é de azulejos e há mesas ao fundo, indicando um local de show.

“Ouve meu cântico, quase sem ritmo/ Que a voz de um tísico, magro, esquelético/ Poesia ética em forma esdrúxula/ Feita sem métrica com rima rápida.// Amei Angélica, mulher anêmica/ De cores pálidas e gestos tímidos/ Era maligna e tinha ímpetos/ De fazer cócegas no meu esôfago.// Em noite frigida, fomos ao Lírico/ Ouvir o músico, pianista célebre/ Soprava o zéfiro, ventinho úmido/ Então Angélica ficou asmática.// Fomos ao médico de muita clínica/ Com muita prática e preço módico/ Depois do inquérito descobre o clínico/ O mal atávico, mal sifilítico.

“Mandou-me célere comprar noz vômica/ E ácido cítrico para o seu fígado/ O farmacêutico, mocinho estúpido/ Errou na fórmula, fez despropósito.// Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo/ Ácido fênico e ácido prússico./ Corri mui lépido mais de um quilômetro/ Num bonde elétrico de força múltipla.// O dia cálido deixou-me tépido/ Achei Angélica já toda trêmula/ A terapêutica dose alopática/ Lhe dei em xícara de ferro ágate.// Tomou num fôlego, triste e bucólica/ Essa estrambótica droga fatídica/ Caiu no esôfago, deixou-a lívida/ Dando-lhe cólica e morte trágica.

“O pai de Angélica, chefe do tráfego/ Homem carnívoro, ficou perplexo./ Por ser estrábico, usava óculos/ Um vidro côncavo, e o outro convexo.// Morreu Angélica, de um modo lúgubre/ Moléstia crônica levou-a ao túmulo/ Foi feita a autópsia, todos os médicos/ Foram unânimes no diagnóstico.// Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico/ Todo de mármore da cor do ébano/ E sobre o túmulo uma estatística/ Coisa metódica como “Os Lusíadas”.// E, numa lápide paralelepípedo/ Pus esse dístico, terno e simbólico:/ ‘Cá jaz Angélica, moça hiperbólica/ Beleza helênica, morreu de cólica.’”

O que é isso? Uma modinha, “O drama da Angélica”, de certos Barreto e Lubiti, gravada em 1942 pela famosa dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. A letra, toda em proparoxítonas, é uma obra-prima. O vídeo está no YouTube —não perca.

Sim, a sofrência das duplas sertanejas brasileiras já foi assim.



Fonte ==> Folha SP

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