Levou meio século para que, em 2006, fosse publicado “Ennui“, poema escrito por Sylvia Plath aos 23 anos, quando fazia faculdade. Oito anos depois, ela pôs a cabeça no forno do fogão, ligou o gás, se matou e foi entronizada no panteão da poesia feminina.
O soneto “Ennui” (tédio) é uma crítica mordaz a quem —seja qual for seu gênero— se crê predestinado a peripécias. “A fera na selva jamesiana não saltará nunca”, diz o poema cujo título remete ao “spleen” de Baudelaire.
É o tédio que rói o coração, explicita Plath, e não a ânsia de trombar com dragões, ogros ou os anjos do Apocalipse. Esses entes são ilusões de “cavaleiros naïf”, diz, e hoje até “princesas blasées” sabem que não passam de figuras ridículas.
Em “A Fera na Selva”, o ingênuo Henry James leva a sério a expectativa de glória de John Marcher. E em “Ennui”, a espoleta Sylvia Plath zomba do criador e da criatura que cortejam futuros fantasiosos.
Em 1962, estreou em Paris uma adaptação teatral de “A Fera na Selva” feita por Marguerite Duras, que vinha de escrever o roteiro do filme “Hiroshima, Meu Amor“. Enquanto James escanteia May Bartram, e Plath nem fala dela, Duras tornou-a protagonista da peça.
A abordagem é feminista. John Marcher não sabe quem é nem o que quer da vida —a selva pela qual perambula às cegas, almejando e temendo que uma besta lhe pule na goela. Já May sabe muito bem que o ama. Para Marguerite Duras, é ela a fera à vera, a encarnação da fêmea libidinosa.
Em 1988, o cineasta Benoît Jacquot fez da peça um telefilme, no qual May é vivida por Delphine Seyrig, diva do cinema e grande dama do feminismo francês. No início, ela desliza com lisura felina. No fim, mesmo derrotada diz: “Nunca é tarde demais”.
Nunca é tarde para enjaular bestas-feras. Indiciado por estupro e agressão sexual de menores, Jacquot está atrás das grades desde o começo do mês. Foi incriminado pelas adolescentes que escalou para serem ninfetas nos seus filmes e na cama. Gérard Depardieu, que fez o papel de Marcher no teatro, pegou 18 meses de cadeia (com sursis) por assédio sexual.
O irlandês Colm Toíbín é autor de dois livros a respeito de Henry James, um de crítica e o romance “O Mestre”. Ele diz que o entendimento de “A Fera na Selva” deu uma guinada com a publicação, em 1990, de “Epistemology of the Closet”, da americanave Kosofsky Sedgwick.
Apesar de novidadeiro, o livro é tão velho quanto Sainte-Beuve, que no século 19 defendeu que a obra reflete seu autor. Sedgwick o radicalizou e disse que a crítica de uma obra também reflete quem a faz. E como seu livro valoriza a “performatividade” de quem sai do armário, ela revela no prefácio: “quando fiz sexo com outra pessoa, foi com um homem”.
É furta-cor o armário onde Henry James se entocava. Sedgwick acha que cobiçava mulheres (Constance Woolson, sobrinha-neta do autor de “O Último dos Moicanos“, James Fenimore Cooper) e homens (Oliver Wendell Holmes Junior, que veio a ser juiz da Suprema Corte).
Disso ela conclui que “A Fera na Selva” expressa “pânico heterossexual”, a angústia frente ao desejo que escapa às normas. Na prática: May deseja Marcher, mas ele falha em fazer o normatizado —desejá-la de volta— e entra em pânico.
Amá-la lhe é impossível porque é um enrustido. Alienado, ignora até estar trancado no armário. A fera que o apavora é a pulsão homossexual clandestina, o que leva “Epistemologia do Armário” a associá-lo às palavras “perversão”, “catástrofe”, “vergonha” e “monstruoso”.
Henry James escreve que Marcher é queer, que significava “esquisito” e não, como hoje, a recusa à categorização homo/heterossexual —vide o arco-íris LGBTQQICAPF2K+. “Epistemologia do Armário” não usa a palavra nunca. Mas, assim como “Problemas de Gênero”, de Judith Miller, também publicado em 1990, é um texto fundador da teoria queer.
Sedgwick manipula May e Marcher para provar a teoria da qual foi pioneira e agradar a todas, todos e todes. Faz o contrário de Henry James, que sonda, nuança, é elíptico. São só duas as vezes que “A Fera na Selva” insinua que o casal não está apartado da sociedade selvagem —é sua expressão.
De May, a novela diz: “Instalou-se na sua aparência o alheamento, e sua conduta tornou-se até para ela, no sentido social, um falso retrato dela própria”.
E de Marcher: “Ele usava uma máscara com um sorriso social estampado, mas a expressão do olhar que saía do buraco dos olhos não combinava nem um pouco com os outros traços da máscara”.
Fonte ==> Folha SP