A saúde financeira das famílias brasileiras atingiu um patamar crítico em julho, com 78,2 milhões de pessoas negativadas, o maior número desde 2016, segundo a Serasa Experian. O valor das dívidas em atraso superior a 90 dias soma R$ 482 bilhões. Quase metade da população adulta (47,9%) está inadimplente, com destaque para Amapá (64%), Distrito Federal (60,9%) e Rio de Janeiro (57%). Bancos, administradoras de cartão de crédito e financeiras são responsáveis por 46,9% dessas dívidas.
De acordo com os dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o percentual de famílias endividadas alcançou 78,5% em julho, o maior desde junho de 2024. Especialistas apontam que juros altos, orçamento familiar apertado e a busca por crédito de curto prazo criam um ciclo vicioso de endividamento. O crescimento das apostas esportivas online, as bets, também contribuiu para esse cenário.
Um ciclo vicioso de reincidência e orçamento apertado
A reincidência da inadimplência é um problema estrutural. A Associação Nacional dos Bureaus de Crédito (ANBC) informa que 83% dos consumidores negativados em maio de 2025 já haviam enfrentado a mesma situação nos 12 meses anteriores. Desses, 63% receberam uma nova negativação e 20% haviam regularizado a situação, mas voltaram a dever. Apenas 17% foram negativados pela primeira vez.
Elias Sfeir, presidente da ANBC, ressalta que “a reincidência revela que estamos diante de eventos recorrentes, sinalizando um desequilíbrio orçamentário mais profundo, muitas vezes crônico”.
Essa fragilidade financeira é notável na rapidez com que o dinheiro das famílias se esvai. Um estudo com 8 mil pessoas, feito pela fintech Klavi, especializada em inteligência de dados financeiros via Open Finance, mostra que 35% delas gastam toda a renda em até 36 horas após o recebimento, e 56% têm menos de R$ 100 disponíveis na conta nesse período. Bruno Chan, CEO da Klavi, explica que “os dados mostram que o brasileiro tem pouca margem de manobra financeira. O que entra na conta, em grande parte, sai quase de imediato para cobrir despesas fixas e dívidas”.
A Pesquisa de Saúde Financeira do Trabalhador Brasileiro, da SalaryFits, empresa ligada à Serasa Experian, reforça essa percepção ao mostrar que 54% dos trabalhadores formais não conseguem fechar o mês com o salário na conta. Os mais afetados são a geração Z, a classe C, trabalhadores PJ (pessoa jurídica) e de empresas menores. Segundo Délber Leite, CEO da SalaryFits, “sem estabilidade, o trabalhador sente sua vida pessoal sendo diretamente afetada”.
O fator bets: como as apostas online agravam o cenário
As apostas online, ou bets, desempenham um papel significativo no aumento do endividamento. Dados da Mapfre Investimentos indicam que as apostas consomem uma parcela crescente do orçamento familiar, e cerca de 57% dos indivíduos endividados que começaram a apostar não estavam inadimplentes antes dessa atividade. Essa dinâmica sugere que as apostas são um fator de deterioração da saúde financeira, e a inadimplência não deve diminuir no curto prazo.
O endividamento também afeta diretamente o bem-estar da população: 66% dos entrevistados relatam aumento do estresse, 43% da irritabilidade e 39% da insônia.
Para quitar as dívidas, 49% dos trabalhadores que não conseguem fechar as contas com o salário recorrem a fontes alternativas, como linhas de crédito (cartão, cheque especial, empréstimo) ou renda familiar, além de trabalhar como freelancer.
Mudanças no consumo: a reação do consumidor à crise
A consequência desse cenário é uma mudança drástica no comportamento de consumo. Com o orçamento apertado, o consumidor se torna mais cauteloso, priorizando o custo-benefício e diminuindo compras por impulso.
A pesquisa Brand Footprint Brasil, da Worldpanel by Numerator, indica menor fidelidade às marcas e uma postura mais seletiva nas compras. Leandro Rosadas, especialista em gestão de supermercados, observa que “os brasileiros estão mais atentos a ofertas especiais e produtos que combinam qualidade e preço justo”.
Essa tendência é visível em categorias como artigos de limpeza, onde as marcas mais baratas cresceram 5,6% em valor no último ano, o dobro das marcas premium, conforme a NielsenIQ. Gabriel Fagundes, diretor de insights da empresa, ressalta que “a vantagem competitiva no preço foi crucial para que essas marcas conquistassem novos consumidores”.
Crédito restrito: os efeitos no bolso
A pressão no bolso do consumidor também é sentida no sistema financeiro. Com a inadimplência das famílias atingindo 4,54% em julho – o maior nível desde 2013, segundo o Banco Central –, as instituições financeiras reagem com maior cautela, restringindo a oferta de crédito.
Claudio Felisoni, presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e de Mercado de Consumo (Ibevar) e professor da FIA Business School, conclui que “a projeção indica pressão crescente sobre o orçamento familiar, refletindo o impacto das altas taxas de juros no crédito ao consumidor”.
Fonte ==> Gazeta