Com mais de 20 prêmios na bagagem, Marianna Brennand, de 45 anos, viu o longa “Manas”, que marca sua estreia na ficção, arrebatar plateias em diferentes latitudes desde o lançamento no Festival de Veneza, em agosto do ano passado.
“Ficção foi a única maneira possível de contar essas histórias com ética e respeito, protegendo as vítimas e sem trazer mais violência”, diz a cineasta, brasiliense “com alma pernambucana”, sobre a obra baseada em fatos reais que narra como uma garota de 13 anos vivencia e reage a uma situação de abuso intrafamiliar.
Ao traduzir com sensibilidade o drama da exploração sexual de meninas na Ilha do Marajó, no Pará, a brasileira ganhou o Director’s Award, em Veneza, e foi premiada também em Cannes.
“Um princípio fundamental do filme foi respeitar os corpos dessas crianças, sem estetizá-los nem espetacularizar a violência”, diz a diretora. Em todos os países por onde passou com o filme, de Cuba aos Estados Unidos e Europa, Marianna ouvia agradecimentos pela coragem de se debruçar sobre esse tema. “E me falavam: ‘Aqui também é assim. Não é só no Brasil que acontece isso’.”
“Manas” figura entre os 16 candidatos à indicação brasileira para a categoria de melhor filme internacional no próximo Oscar. O resultado de qual título tentará uma vaga para o país será anunciado nesta segunda-feira.
A cineasta concedeu a entrevista de Nova York, onde participa do lançamento de uma coleção de joias inspirada na obra do artista plástico Francisco Brennand, seu tio-avô e tema de um documentário homônimo dirigido por ela.
Como começa sua relação com a problemática da violência e abuso sexual na Ilha do Marajó?
Saí para almoçar com Fafá de Belém, amiga de muitos anos, em meados de 2013. Ela tinha voltado da região e entrado em contato com essa realidade de exploração sexual no Marajó. Estava muito mexida. Foi uma conversa de mana, de mulher para mulher, e fiquei atravessada, muito abalada. Foi um encontro que mudou minha vida para sempre. Meu ímpeto foi: preciso fazer um documentário de denúncia para lançar luz sobre esse tema, contar o que estava acontecendo e tentar transformar essa realidade de alguma maneira.
Por que abandonou a ideia e partiu para ficção?
Bateu uma questão ética que era como contar essa história violenta sem trazer mais violência. Eu não poderia colocar mulheres e crianças na frente das câmeras e pedir para elas recontarem uma situação traumática de abuso intrafamiliar e violência sexual que tinham vivido. A ficção foi a única maneira possível de contar essas histórias com ética e respeito, protegendo as vítimas e sem trazer mais violência.
Qual o papel do filme diante de uma realidade tão complexa?
É de acreditar no cinema como uma ferramenta poderosa de empatia e transformação social e política. Uma transformação que vem quando a gente consegue se colocar no lugar do outro. O desafio foi pôr o espectador no coração dessa menina ao vivenciar aquela violência. Meu desejo era gerar consciência.
A força do filme estaria em trazer uma delicadeza feminina, ao não explicitar a violência nem sexo?
Um princípio fundamental do filme foi respeitar os corpos dessas crianças, sem estetizá-los nem espetacularizar a violência. Foi uma oportunidade como mulher contar uma história sobre mulheres, sobre uma violência que acontece todos os dias. De um ponto de vista feminino. Essas violências não devem acontecer. Como vou filmá-las?
Como foi sua primeira experiência no Marajó? Teve contato direto com casos como o da protagonista do filme, abusada pelo próprio pai? Foram muitas idas ao Marajó. Era importante a veracidade, o respeito pela verdade. Não cabia nenhum tipo de superficialidade, de clichê. Fomos muito dedicadas e diligentes em pesquisar, checar fatos e conversar com agentes de saúde, conselheiro tutelar, psicólogo, delegado, assistente social, promotor.
Fafá de Belém pôs a gente em contato com a irmã Marie Henriqueta [Cavalcante], figura fundamental na luta pela vida dessas crianças e mulheres na região amazônica, e ela abriu muitas portas, nos apresentou o delegado Rodrigo Amorim, que atuava no Marajó. Eles foram fundamentais para nos guiar.
Por que levou mais de uma década até o lançamento do filme?
“Manas” é um projeto de uma década. Em 2014, a gente se inscreveu num edital de desenvolvimento do roteiro. Em 2024, o filme foi lançado no Festival de Veneza. Nesse processo, entendi que o problema é muito mais profundo e grave do que imaginei quando comecei o filme. A gente está falando do seu livro [“As Meninas da Esquina”, da editora Record, lançado em 2005], de uma exploração sexual que acontece no Brasil todo, no mundo inteiro. Em cada lugar, com o seu contexto e características sociais, políticas, econômicas e geográficas específicas. Fomos entendendo que o abuso intrafamiliar era também uma ocorrência gravíssima na região. E isso é algo que acontece do nosso lado também.
O que mais lhe impactou no contato com a realidade nua e crua?
Tentei trazer para o filme a dimensão do corpo de uma criança que pega uma rabetinha e vai em direção a uma balsa, aquele elemento gigantesco, aterrorizante e violento ali no meio do rio. É assustador. Você sente a fragilidade daquele corpo. Isso me impressionou muito, assim como as grandes distâncias, o isolamento, a falta de estrutura e de acolhimento. Não tem para onde correr e pedir ajuda.
O Marajó é um paraíso, com suas casas coloridas no meio da floresta. O filme mostra esse contraste?
O Marajó é lindo. Está presente no filme a beleza do lugar, da floresta e do rio, que alimenta mas também oprime e isola. Para sair de casa, você precise remar uma rabeta por quilômetros ou pôr combustível. É uma situação difícil, de fragilidade econômica, que não tem como julgar. É um paradoxo. São meninas e mulheres escapando de uma violência e de um abuso em direção a outro.
Há essa idealização de que talvez esse “homem da balsa” possa representar uma vida melhor, quando na verdade ele vai continuar abusando dela sexualmente, traficá-la ou vendê-la para alguma família onde essa menina vai ser violentada. Não temos como julgar uma menina ou uma mãe diante de situações como essa. O que temos a fazer é nos unir como sociedade e entendermos que não é possível que mulheres e crianças vivam dessa maneira.
E a questão cultural e da masculinidade naquele contexto? São homens que se acham donos das mulheres e que têm direito de iniciar sexualmente suas filhas?
Eu ouvi isso várias vezes. ‘Plantei a bananeira, a primeira banana é minha’ ou ‘o primeiro sangue é meu’. Essas frases não estão no filme, mas fica subentendido. Essa mentalidade não está só no Marajó. É vista na periferia de São Paulo. Vivemos numa sociedade machista, patriarcal e misógina. Não são só os homens do Marajó que acham que têm direito sobre o corpo dessa menina, são os homens do mundo. É raro uma mulher que não tenha passado por algum tipo de violência. Infelizmente, violência sexual não respeita classe social, sexo, gênero e idade. Acontece do nosso lado.
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Como você enxerga esse debate ideológico em torno da violência sexual contra crianças e adolescentes e a má política dentro desse contexto?
É uma questão que precisa ser resolvida também na esfera política, mas não é uma questão partidária. Isso aconteceu no Marajó. Virou uma briga partidária, que joga uma cortina de fumaça e estigmatiza essa população. O que não resolve nada. Tem seres humanos ali, mulheres e crianças que continuam a viver essa violência sexual. É uma questão humanitária. Isso não acontece só no Brasil e no Marajó. Esse tipo de violência, infelizmente, é universal.
O Marajó ficou estigmatizado, inclusive por fake news.
Exato, e a realidade já é muito dura. O filme passou em Belém e agora estamos fazendo um circuito no Marajó, com debates e acolhimento. Apesar de ter sido baseado em histórias reais, a realidade é muito pior, porque tem coisas que não são possíveis de serem retratadas. O que eu ouvi e vivi me marcou e revoltou profundamente. Esse grito continua, porque essas violências continuam acontecendo.
Como explica a aceitação do filme premiado em festivais ao redor do mundo?
Foi muito emocionante ver como o filme conecta o espectador através da emoção, mas também movimenta a consciência. Sentimos isso na estreia em Veneza. Foi muito impactante como o filme tocou um público com uma história do Marajó, de uma região amazônica. Um momento especial foi quando os jurados europeus falaram porque escolheram “Manas” por unanimidade. Justamente por essa potência universal.
Eu queria que o filme tivesse legitimidade. As pessoas assistem “Manas” e, infelizmente, se identificam. Isso é maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Uma conexão que se deve à potência cinematográfica e ao fato de que aquela menina está dentro de toda mulher que já foi violentada ou passou por algum tipo de violência. Essa universalidade também aterroriza. Em todos os países que a gente passou, de Cuba aos Estados Unidos e Europa, as pessoas chegavam emocionadas, agradecendo pela coragem de me debruçar sobre esse tema com tanta delicadeza. E me falavam: ‘Aqui também é assim. Não é só no Brasil que acontece isso’.
Manas deriva de mana, de irmã, como as mulheres se tratam no Pará. O nome do filme fala dessa conexão, de irmandade?
É a maneira carinhosa que as mulheres se chamam. Mana é uma palavra forte, que tem muito afeto nela. Não dava para traduzir. Quando você traduz para sister ou sis, não tem a mesma força. É uma palavra que representa a mensagem do filme: nós, mulheres e manas do mundo, unidas e nos fortalecendo para ter coragem, quebrar silêncios e pedir ajuda.
Isso aconteceu também com o vídeo do Felca, um fenômeno que furou bolhas e levou a aprovação de uma lei.
Exato. Nós que temos voz temos a obrigação de falar. Que bom o Felca usar a potência de comunicação que tem a favor da proteção de mulheres e crianças. O que a gente vê na internet e nas mídias sociais é um reflexo do que acontece aqui no nosso entorno.
‘Manas’ é pré-candidato à indicação do Brasil na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2026. O que que significa essa vitrine internacional?
“Manas” teve uma trajetória muito bonita nos festivais, desde a estreia em Veneza, com o prêmio máximo da Giornata delle Autori, dado pela primeira vez a uma brasileira. Depois, ganhando muitos prêmios de público e da crítica, um reconhecimento que culminou no Festival de Cannes com o Women in Motion, que tem como objetivo valorizar a presença da mulher na indústria cinematográfica.
Essa possibilidade de conseguir a nominação e quem sabe uma premiação no Oscar, abre um portal para o cinema brasileiro e a nossa cultura. É muito bonito estar sendo considerado junto com tantos outros filmes extraordinários brasileiros neste ano. Se formos o indicado do Brasil, será uma possibilidade de jogar um holofote ainda maior na mensagem do filme. Levar a defesa de mulheres e crianças e falar sobre essa realidade universal para o mundo todo.
Marianna Brennad, 45
Nascida em Brasília, ela se formou em cinema pela Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Em 2007, funda a produtora Inquietude. Dirigiu também o documentário “Francisco Brennand”, sobre o artista pernambucano que é seu tio-avô. É presidente do Conselho Deliberativo da Oficina Francisco Brennand
Fonte ==> Folha SP