A terça-feira (23) ilustrou como precisamos nos adaptar ao mundo da pós-verdade para manter a perspectiva crítica. Houve comédia nas Nações Unidas e discurso político num palco de comédia.
Na abertura da Assembleia-Geral, o líder do país mais poderoso do mundo improvisou ao microfone, fez piada com escada rolante e fez graça sobre a “química” com Lula.
Num teatro de Los Angeles, um comediante, brevemente cancelado sob ameaça do dito chefe de Estado, voltou ao ar com um monólogo que misturou humor a sérios argumentos políticos.
Há hábitos que escapam ao nosso controle, como sugeriu aquela farsa brasileira sobre adultério de sucesso estrondoso. No momento, cancelar e coçar, é só começar. A “cultura de cancelamento” foi apropriada pela ultradireita com a conivência da mídia, que papagaia “woke” e “anti-woke” ignorando a origem da palavra, na década de 1970 —uma referência a desigualdades raciais reais, não a qualquer política de identidade.
Como, no momento, é impossível avaliar a química com Lula, as subitamente reveladas chances de vitória militar da Ucrânia ou a profecia de que a Europa está indo para o inferno, trato aqui do inferno astral que pode acometer os demagogos da cruzada anti-woke.
Começa na sexta-feira (26) em Riad o mais rico festival de comédia do mundo. A Arábia Saudita ofereceu cachês altíssimos para cômicos já multimilionários como Dave Chappelle, Kevin Hart, Bill Burr e Jimmy Carr. O festival cabe nos planos de normalização da ditadura do príncipe que ordenou o assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi e já conseguiu dobrar a Fifa para sediar a Copa do Mundo em seu reino, onde homossexuais são executados.
Não se pode subestimar a importância de comediantes de direita no resultado da última eleição americana. De Austin, no Texas, Joe Rogan atrai milhões de seguidores —a maioria homens jovens— e comanda, além de um podcast diário, um mini-império de comédia que apoiou a campanha do atual presidente. Seus argumentos eram pela irrestrita liberdade de expressão —para eles, passe livre para humilhar negros, mulheres, gays e trans. Além disso, têm em comum o fato de não conseguirem escrever uma só piada remotamente engraçada.
Tal é o poder político deste cabal pseudo-libertário que, no mês passado, a mídia americana relatou súplicas da Casa Branca para que Rogan parasse de exigir no ar a divulgação dos documentos do caso do pedófilo Jeffrey Epstein.
Lá Fora
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Mas há o grupo de superestrelas talentosas da comédia stand-up supostamente alinhadas à democracia. Um dos mais ricos e influentes é Dave Chappelle, que, nos últimos anos, liderou a onda de comediantes posando de vítimas de censura e que acha necessário “denunciar” a ínfima minoria de trans americanos.
O problema deste segmento, que quer respeito da maioria do público, é não ter notado que está no poder. Venceram. As minorias que eles acusaram de opressão estão em fuga, perseguidas, sem acesso a assistência médica e ficando desempregadas por expressar opinião.
Agora se contorcem para justificar terem embolsado dólares manchados de sangue para contar piadas no reino que, novos documentos parecem confirmar, ajudou a financiar o terror do 11 de Setembro. O mesmo reino que, em 2018, sequestrou no exterior, aprisionou e torturou Fahad Albutairi, o primeiro comediante popular saudita. Caçadores que não percebem quando viram caça.
Fonte ==> Folha SP