Na véspera do Natal, o Parlamento argelino aprovou uma lei que classifica o domínio colonial francês como crime, exigindo desculpas oficiais e reparações por parte da França. A legislação caracteriza as execuções, a tortura, os testes nucleares, o saque de recursos naturais, dentre outros, praticados de 1830 a 1962, como crimes imprescritíveis. O texto prevê sanções contra a glorificação do colonialismo e reforça demandas antigas, como a devolução de arquivos, artefatos culturais e restos mortais levados à França. Apesar de não ter efeito no direito internacional, há peso político na ação.
Em 2024, em uma passagem por Argel, tive a oportunidade de testemunhar o quanto a memória colonial é viva por lá. As cenas do clássico “A Batalha de Argel”, filmadas na Kasbah —centro histórico árabe, bem próximo dos edifícios imponentes de arquitetura francesa, de frente para o Mediterrâneo—, ofereciam uma chave de leitura não apenas do passado, mas do presente argelino.
O Museu Nacional do Mujahid, que não pode ser filmado nem fotografado, exibe maquetes em tamanho real das práticas de tortura empregadas pelo Exército francês. O Memorial dos Mártires marca a paisagem de Argel e homenageia os mais de um milhão de mortos da guerra de independência.
Há também franceses que reconhecem e se constrangem com a brutalidade do colonialismo na Argélia. Em 2004, ainda estudante em Paris, tive a oportunidade de conversar por muitas tardes com Monsieur André Lafitte, cuidador de idosos, que havia servido pelo lado francês na guerra da Argélia. Ele relatava, com pesar, as violências que havia testemunhado e praticado.
Transformar essa memória colonial, tão viva, em instrumento de política externa, merece especial atenção neste momento, quando as relações Argel-Paris atravessam uma das fases mais tensas desde a independência argelina.
Colunas
Receba no seu email uma seleção de colunas da Folha
O apoio francês ao plano marroquino para o Saara Ocidental foi interpretado pela Argélia como uma ruptura do equilíbrio histórico que a França dizia almejar para o Magreb. Para Argel, que apoia a autodeterminação do povo saaraui e a Frente Polisário, a mudança francesa significou alinhar-se a Rabat em uma das questões mais sensíveis da geopolítica regional.
Em abril, Argélia e França expulsaram diplomatas de ambos os países depois que autoridades francesas detiveram um funcionário consular argelino no contexto da investigação sobre o sequestro do blogueiro Amir Boukhors, crítico a Argel. Embaixadores foram convocados, e os mecanismos de cooperação foram temporariamente suspensos.
É nesse contexto que a nova lei ganha densidade política. Ao tipificar juridicamente a colonização como crime, o Estado argelino institucionaliza o posicionamento que há anos orienta sua diplomacia.
A reação francesa foi de desconforto. Autoridades reiteraram a disposição ao diálogo sobre memória, mas classificaram a lei como um gesto hostil em um momento de tensões acumuladas. Paris tem resistido a pedidos de desculpas formais, embora Macron já tenha reconhecido a brutalidade do sistema colonial e seus efeitos duradouros.
Vale lembrar que a Argélia é fornecedora estratégica de gás para a Europa. E que a França concentra uma das maiores diásporas argelinas.
Todas
Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres
Fonte ==> Folha SP


