A Folha publicou, no último dia 26 de março, artigo intitulado “Israel não comete genocídio em Gaza, mas pode estar a caminho”, do historiador israelense Benny Morris. Adocicado para dar sabor de bom senso, o texto é uma pérola de contorcionismo.
Insatisfeito em negar o que está aos olhos da humanidade e nas barras dos tribunais, o autor manipula a ameaça de carnificina —”o genocídio acabará por acontecer, e o lado mais forte, é claro, será aquele que o perpetrará”— como instrumento para impor os ditames do Estado sionista.
O morticínio de 50 mil palestinos, na sua imensa maioria civis, incluindo 17 mil crianças, não perturba o negacionismo do escriba, peça indispensável no esforço para retirar o sionismo do banco dos réus e iludir os desavisados sobre sua essência.
Ao contrário do nazismo, que tratava como incondicional o extermínio de judeus e outras minorias, as elites sionistas de todos os naipes atuam com duplicidade: o genocídio pode tanto ser um processo prático —como ocorre na Faixa de Gaza desde 2023— quanto uma arma tática que visa acelerar a limpeza étnica, promovendo pânico e desesperança para consolidar a colonização do rio ao mar.
Como é da tradição dos afiliados ao oximoro “sionismo de esquerda”, Morris advoga a teoria dos dois demônios. Reconhece que “corações e mentes” israelenses estão sendo conquistados para a lógica do “assassinato em massa”. No entanto, considera que esse sentimento “deriva, pelo menos em parte, de um processo paralelo de desumanização dos judeus” —cuja origem estaria no Alcorão, com o Hamas como sua principal encarnação.
Para Morris, se o genocídio do povo palestino vier a acontecer, seria condenável, mas responsivo, nos marcos da retaliação ao islamismo e a ações como o 7 de outubro. Ainda que o autor abrace denúncias de “brutalidades” contra palestinos, define-as como malignidades reativas, no caminho de uma triste, mas imparável, solução final.
Apenas marginalmente registra, para explicar a fúria contra Israel, os crimes cometidos desde 1948, incluindo a matança dos últimos 17 meses. Seu argumento, contudo, repousa na mítica dança macabra entre dois extremos, como se o bom sionismo tivesse se degenerado por culpa do “terrorismo palestino”, em infinita dinâmica de retroalimentação.
O historiador israelense benze a fórmula dos dois Estados e omite a vertente principal do conflito: o projeto sionista de implantar uma etnocracia judaica sobre território de ampla maioria árabe-muçulmana, em aliança com Estados imperialistas seduzidos por ter uma cabeça de ponte no Oriente Médio.
Ideologias dessa natureza são intrinsecamente racistas e coloniais, trazem no código genético a supremacia e o genocídio. O sionismo usurpou a identidade judaica para se configurar como um nacionalismo chauvinista de práticas aparentadas ao nazifascismo. O governo de Binyamin Netanyahu é a degradação previsível do Estado de Israel, não um desvio de rota.
Benny Morris recorre à prestidigitação para defender o regime do qual é leal soldado, tentando salvá-lo do próprio governo atual. Para se separar da ala dos psicopatas, aponta chagas da ocupação sionista e critica a administração extremista. No meio de truques narrativos, todavia, mal disfarça a responsabilização dos palestinos até pelo próprio genocídio, caso não se ajoelhem e abjurem de seus sonhos emancipatórios.
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Fonte ==> Folha SP