Na semana passada, o Congresso derrubou a medida provisória 1.303, que estabelecia mudanças em regras de tributação. A derrota provocou reações indignadas no governo.
O presidente afirmou: “A decisão da Câmara de derrubar a medida provisória que corrigia injustiças no sistema tributário brasileiro não é uma derrota imposta ao governo, mas ao povo brasileiro. Essa medida reduzia distorções ao cobrar a parte justa de quem ganha e lucra mais. Dos mais ricos”.
De acordo com a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT), “a pequena parcela muito rica do país não admite que seus privilégios sejam tocados. Não querem pagar impostos como a maioria dos cidadãos”.
As frases estão distantes dos fatos. Os detalhes da proposta revelam uma história muito diferente. O texto original do governo preservava distorções na tributação, como uma alíquota de apenas 5% para alguns títulos privados de crédito. Os problemas não param por aí.
A medida ficou ainda pior com a versão aprovada na comissão mista do Congresso, em que os lobbies mais fortes mantiveram ou ampliaram seus benefícios. Nada mal para os grupos do setor privado que podem tomar empréstimos com isenção de tributos. Os demais teriam maiores dificuldades em conseguir financiamento.
O objetivo do governo era aumentar a arrecadação para viabilizar gastos crescentes, embalada por sugestões tímidas de reduzir distorções nas regras tributárias, mas que resultaram em novos problemas.
Folha Mercado
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Mas, se essa era a intenção, além de “cobrar a parte justa”, a proposta não deveria implicar tributação igual para todos que ganham o mesmo? Por que alguns não têm que pagar Imposto de Renda como se cobra dos demais?
Vale lembrar que o governo recentemente criou a LCD (Letra de Crédito do Desenvolvimento), um instrumento para financiar modalidades de investimento isentas de tributos. Afinal de contas, qual é a agenda do governo? Aumentar ou reduzir as distorções tributárias?
Ao contrário do discurso oficial, a crítica à proposta não foi motivada para preservar benefícios tributários, mas, sim, por ampliá-los para demais grupos do setor privado.
O agronegócio e a construção civil, por exemplo, são financiados pela emissão de dívida isenta de alguns tributos.
A negociação com o Congresso conseguiu piorar a medida e, entre outros pontos preocupantes, preservou o regime tributário favorecido das bets. E a distância entre a isenção de uns e a tributação dos demais aumentaria com a proposta rejeitada.
O governo fez um discurso pela esquerda, mas apoiou uma proposta com o esqueleto dos lobbies usuais.
O discurso oficial critica os gastos tributários, as isenções fiscais que beneficiam parte da elite e as distorções que favorecem alguns muito ricos em detrimento dos demais. No entanto, defendeu uma medida que vai na contramão do seu discurso.
Por que favorecer as bets? Por que favorecer ainda mais os empresários do agronegócio, que já contam com muitos benefícios tributários, e os do setor imobiliário?
Não faltam críticas à agenda patrimonialista apoiada pelo Congresso. Mas, nesse caso, a agenda foi iniciada pelo Executivo. A surpresa foi o Congresso tê-la rejeitado.
A encrenca poderia ter sido imensa.
Conceder favorecimento tributário a alguns empresários deveria ser a exceção; casos raros e com benefícios difusos tecnicamente bem documentados sobre os seus impactos.
Não é isso que temos.
Alguns setores empresariais se beneficiam de financiamentos que não pagam Imposto de Renda. Por isso, os instrumentos de financiamento são conhecidos como “incentivados”.
Os fundos de investimento ganham dinheiro fazendo a intermediação entre poupadores e empresas que necessitam de recursos. Tanto faz se do agronegócio ou da indústria. As áreas dos fundos que fazem negócio com os financiamentos “incentivados” cresceram e se beneficiaram dessas distorções tributárias que favorecem setores da economia.
Gestores estimam que o valor dos títulos incentivados tenha ultrapassado R$ 2 trilhões.
Esses benefícios para empesas selecionadas, contudo, implicam crédito mais restritivo, e caro, para os demais setores, que pagam tributos, prejudicando o restante do país.
Há muito tempo, economistas e analistas de mercado criticam as distorções tributárias nos instrumentos de crédito para alguns setores. E essas críticas se ampliaram com a última proposta decorrente da MP 1.303.
Por que alguns podem se beneficiar do pagamento de menos tributos, apesar de lucros semelhantes? Essa foi a crítica de muitos analistas à MP, pois ela preservava a isenção tributária para certos grupos. Enquanto isso, o governo defendeu uma medida que mantinha privilégios.
Para piorar, o governo teria criado um problema sério para a gestão da dívida pública.
O Brasil tem taxas de juros elevadas. O governo paga caro para se financiar, e a conta cai no colo de todos nós. Mesmo oferecendo esses juros altos, os leilões mais recentes realizados pelo Tesouro tiveram dificuldades em encontrar compradores para a dívida pública de longo prazo.
Há muita dúvida sobre como o país irá enfrentar os seus problemas fiscais depois da eleição. Os juros podem ser elevados, mas também são os riscos.
A proposta apoiada pelo governo aumentava a distorção que favorecia alguns setores em detrimento do financiamento do próprio governo. Quem compra dívida do governo paga imposto. Quem compra do agro, não. Houve dificuldade na política e fragilidade na técnica.
O discurso oficial pode ser eleitoralmente bom para o governo, mas revela uma dissonância cognitiva preocupante.
Essa pode não ter sido a intenção. Mas, ironicamente, a oposição evitou que o governo desse um tiro no próprio pé.
Fonte ==> Folha SP