26 de dezembro de 2025

A neurocientista descobriu joguinho novo – 25/12/2025 – Suzana Herculano-Houzel

A neurocientista descobriu joguinho novo - 25/12/2025 - Suzana Herculano-Houzel

Meus dias começam assim: antes de levantar, escaneio o aplicativo da Folha, depois o do New York Times, e o do Globo pra saber o que fedeu no mundo enquanto eu dormia (The Atlantic é reservado para leitura noturna por puro prazer); mato o Wordle dos joguinhos do NYT ainda no banheiro; e então caço as palavras do Spelling Bee enquanto tomo meu café de mentira com pão de mentira e queijo de mentira (chicória, sem glúten e sem leite, por razões de intolerância tripla). Nos bons dias, o Spelling Bee dura certinho até o fim do meu pão.

(Não entro mais em rede social alguma. Está na lista ler o livro novo do Cory Doctorow, sobre a ‘merdificação’ da internet, mas é só para descobrir os detalhes de como a cultura da competição para ser o mais forte está levando os senhores tecnofeudais à implosão, viva! Já entramos na era de IA produzindo conteúdo para IA consumir, agora é só pegar a pipoca –ou melhor, aproveitar meu tempo livre conversando de verdade com gente de verdade.)

Mas minha rotina matinal vai ter que sofrer ajustes, porque o aplicativo de jogos do NYT acaba de incorporar o Pips, desafio de lógica usando poucas peças de dominó pré-selecionadas que precisam ser posicionadas numa grade de acordo com as especificações dadas: nestas casas só números iguais, ali só diferentes, aqui têm que somar dez, ali zero, e assim vai. É tudo o que meu cérebro esquisito gosta num jogo só: raciocínio espacial e lógico do tipo se-aqui-então-ali, sem limite de tempo, com o prazer de completar um tabuleiro, mais ter que ficar me lembrando o tempo todo de que a regra fundamental do dominó, de casar números, não se aplica. A sorte não tem vez: Pips é um jogo que só se resolve com flexibilidade mental –ou seja, usando inteligência.

Já aprendi que também no Pips, como no Sudoku e nos problemas na vida de modo geral que dependem de inteligência, o melhor começo é identificar as maiores limitações: tem alguma peça ou número que somente cabe em um certo lugar? Alguma condição que só pode ser atendida por uma peça ou combinação particular? Por exemplo: se duas casas somam zero, já se sabe que ali só cabem peças com zero; se só houver duas disponíveis, então são elas mesmo. Se duas casas têm que somar mais de dez, o fato de as peças de dominó só irem até seis significa que ao menos uma é um seis, e se a outra não for outro seis, então é um cinco.

Daí em diante é possível seguir usando só a memória de trabalho, aquela que constrói e guarda em mente sequências simuladas de ações e seus resultados. Como todo o resto, a memória de trabalho melhora com o uso, conforme é exercitada, e jogos fazem isso. Mas se assim ficar difícil, Pips permite o luxo de voltar atrás e recolocar as peças à vontade, e os três níveis de dificuldade também dão a medida certa de desafio sem frustração demais para cada freguês.

Pips é apenas mais um jogo, mas sua lição é para a vida. Se inteligência é flexibilidade, identificar o maior entrave em cada situação, a peça que mais limita o meio de campo, é o problema mais fundamental –e solucioná-lo é extremamente gratificante, porque é dali que tudo começa a andar, e registrar nosso progresso é o que faz a gente se sentir forte e capaz. Reconhecer e mapear as limitações do jogo é sempre um excelente ponto de partida.



Fonte ==> Folha SP

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