Há algo profundamente errado com um sistema que não consegue impedir que a fome seja usada como arma de guerra, que aquisições territoriais pela força voltem a ser aceitáveis, que dezenas de milhares de civis confinados em uma faixa estreita de terra sejam mortos ou que regras comerciais básicas sejam ignoradas.
A ordem internacional concebida após a Segunda Guerra Mundial visava impedir que esses eventos voltassem a ocorrer. Ela foi implementada em torno de valores que se pretendia compartilhados, como a preservação da paz e segurança, a proteção dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas e a integração comercial.
O direito internacional foi instrumental nesse processo. Acordos foram assinados e instituições foram criadas para possibilitar a cooperação. Isso permitiu diversos avanços, como a Carta das Nações Unidas (1945), que criou a ONU e estabeleceu uma governança para preservação da paz e segurança; a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e outras dezenas de tratados; a Convenção para a Punição e Prevenção do Crime de Genocídio (1948), que impôs a obrigação de prevenir e punir esse crime; as convenções de Genebra (1949) e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) sobre a punição de crimes de guerra e contra a humanidade; o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (1970), que tentou conter a proliferação nuclear e criou a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA); e o GATT 1947 (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e as rodadas de liberalização comercial até a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994.
Essas realizações prometiam uma ordem baseada em regras, em que os conflitos seriam evitados ou administrados de forma a reduzir danos. Mas os conflitos armados, as crises humanitárias e o retorno com força do nacionalismo e do protecionismo indicam que o sistema está falhando.
Uma explicação possível é que, ao mesmo tempo que trouxe avanços, essa ordem continha as sementes da relativa desordem que o mundo vive. Primeiro, ela nunca foi verdadeiramente igualitária. O poder de veto no Conselho de Segurança, que possibilita paralisar o órgão por decisão de um entre cinco países, e a falta de força vinculante das decisões da Assembleia Geral da ONU, são exemplos eloquentes.
Segundo, as regras foram aplicadas de forma seletiva. Alguns eram forçados a segui-las, enquanto se tolerava sua violação sistemática por outros. Essa ordem internacional também foi parcial. Ela encontrou limites sempre que poderia representar uma ameaça aos interesses dos países mais poderosos. EUA, China, Rússia e outros, por exemplo, não aderiram ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para não terem que entregar nacionais acusados de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. A proibição total de armas nucleares, que sempre foi um objetivo declarado, está cada vez mais distante.
Ainda assim, as regras e as instituições internacionais continuam sendo essenciais no enfrentamento dos desafios globais, como a mudança climática. Evidência disso é que os países ainda se sentem obrigados a buscar nas regras legitimação para suas ações e hesitam em se retirar das negociações internacionais.
A ordem internacional vigente está ameaçada, em parte por suas próprias falhas, mas a melhor aposta é na reforma da governança global e na pressão da sociedade civil para forçar os governos a retomarem o compromisso com uma ordem internacional equilibrada e funcional.
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Fonte ==> Folha SP