Vivemos em tempos de atalhos. Tudo precisa ser rápido. O diagnóstico, a opinião, o julgamento. A lentidão da verdade incomoda porque ela exige atributos que parecem desinteressantes diante do apelo das certezas instantâneas.
Nessa lógica, a suspeita passou a ser adotada como método. Já não se investiga para concluir, mas se suspeita para confirmar o que já se decidiu acreditar. A dúvida, que antes iniciava o processo, agora serve para encerrar reputações.
Entre o fato e a versão, a versão quase sempre vence. Especialmente quando envolve pessoas públicas, instituições respeitadas ou profissionais que atuam em ambientes sensíveis, como a advocacia, onde a linha entre função e envolvimento é frequentemente borrada por quem prefere narrativas simples a realidades complexas.
Hoje, basta aparecer em um relatório automático do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) —instrumento que apenas aponta movimentações fora do padrão, sem juízo de legalidade— e atuar tecnicamente em uma causa para que surjam ligações precipitadas e insinuações indevidas de conduta irregular.
Falo com conhecimento de causa: meu nome apareceu em uma reportagem apenas porque constei em uma lista do Coaf e tenho um cliente possivelmente relacionado a uma investigação sobre o INSS. Mesmo com a ressalva de que eu não era investigado, a matéria foi publicada.
A junção apressada de elementos desconexos (relatório, cliente, atuação) passa a funcionar como uma linha narrativa que dispensa provas, contexto ou intenção.
Quando esse tipo de informação é vazado sem cuidado e associado a versões sensacionalistas, cria-se um ambiente fértil para ruídos. E ruídos, quando não enfrentados, viram ecos difíceis de conter.
Ser citado em um relatório não é ser investigado. Estar vinculado a um caso não torna o advogado parte dele. Sua função é assegurar que o direito seja respeitado, mesmo nos casos mais difíceis. Ainda assim, volta e meia, é preciso reafirmar o óbvio: advogado não é réu, cúmplice nem extensão do cliente.
Há, sim, casos em que limites éticos são ultrapassados. Mas usar as exceções como régua é ignorar que as garantias democráticas existem justamente para os momentos em que seria mais tentador descartá-las.
A confusão entre essas figuras, além de injusta, é perigosa. Quando a opinião pública passa a tratar a defesa como ameaça, o que se fragiliza não é apenas uma reputação individual, mas o próprio sistema de justiça, que começa a ruir por dentro.
O risco não está restrito a casos específicos. Quando se normaliza a ideia de que a advocacia pode ser rotulada como suspeita, pelo simples fato de existir, estamos minando um dos fundamentos da justiça.
Defender não é proteger culpados, é proteger o devido processo legal. E misturar essas esferas é corroer o que ainda sustenta o Estado de Direito.
Os mecanismos de controle são legítimos e necessários. Mas é preciso fazer uma distinção clara entre informação e insinuação, entre alerta técnico e denúncia formal, sob pena de se transformar vigilância em linchamento.
A fiscalização pode e deve ser rigorosa, mas sem abrir mão da precisão e do respeito às garantias individuais. É possível fiscalizar com rigor, sem distorções. É possível noticiar com responsabilidade, sem alimentar especulações. E é necessário refletir sobre os danos que a superexposição pode causar, não só a pessoas, mas às instituições.
Uma sociedade que normaliza o ruído e demoniza a defesa abre espaço para a corrosão silenciosa das garantias que ela mesma reivindica. Todo direito ameaçado hoje pode ser o mesmo que fará falta amanhã.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Fonte ==> Folha SP