30 de julho de 2025

A vida fora da casa-grande – CartaCapital

A vida fora da casa-grande – CartaCapital

Em 16 de junho, Maria ­Raimunda Anastácio Gomes completou 63 anos. Teve festa, bolo, brigadeiro e alguns convidados. Foi a segunda vez que ela comemorou a data. Nos anos anteriores, não sabia o que era celebrar a vida, porque passou mais de quatro décadas em condições análogas à escravidão em uma residência de Belo Horizonte. Órfã desde os 17 anos, foi levada do interior para a capital por uma mulher, com a promessa de trabalho e uma vida digna. Era o começo de um calvário que perdurou até 2023, quando foi resgatada e indenizada pelos longos anos de servidão em condições degradantes, com jornada exaustiva e trabalho forçado. Como parte da indenização, a Justiça Federal de Minas Gerais concedeu à vítima a casa da patroa escravocrata, que morrera durante a tramitação do processo. Mas essa não foi a única herança que coube a dona Maria, já que a sequela psicológica pela vida indigna que levou ela carrega até hoje, apesar de enxergar felicidade na liberdade adquirida.

“Trabalhei muito e não recebia nada. Eu ficava presa, era dia e noite trabalhando. Fazia de tudo: cozinhava, lavava roupa, passava… Sem sair, sem nada”, relembra dona Maria, radiante de felicidade por ter mudado de vida. Apesar do estado de êxtase, ela teve, e ainda tem, ­dificuldade de reinserção social, já que não tinha vínculo com nenhum familiar desde que foi abduzida por duas irmãs, suas antigas “empregadoras”. Com dificuldade cognitiva, ela é acompanhada por uma psicóloga e assistida pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“Essa reinserção social é sempre muito difícil, é o principal gargalo que enfrentamos em casos de trabalho escravo no âmbito doméstico. Diferentemente de outros trabalhadores resgatados, que normalmente têm para onde voltar, as domésticas – em sua maioria mulheres que passaram, em média, 26 anos nessa condição e são libertadas já em idade avançada – muitas vezes não têm para onde ir”, explica a pesquisadora Lívia ­Miraglia, uma das coordenadoras da Clínica e professora de Direito da UFMG.

Sônia Maria de Jesus voltou para a casa dos patrões escravocratas – Imagem: Redes Sociais/Vereadora Carla Ayres

Dona Maria é analfabeta, mal consegue assinar o próprio nome, e necessita de atenção especial. Por sorte, conta com a ajuda da amiga Shirlei, seu braço direito para resolver as coisas do dia a dia. ­“Shirlinha e as meninas da Clínica são minha família”, diz. “A gente tentou, levamos para estudar, ficamos insistindo para aprender a ler e escrever, mas ela falou ‘gente, eu sei que vocês estão querendo me ajudar, mas não quero mexer com isso’. Ela está feliz, vivendo a vidinha dela, isso é o que importa”, acrescenta Miraglia.

“Foi muito difícil no início, mas agora estou começando a me acostumar, estou aprendendo a sair sozinha, tenho meu dinheirinho para comprar as coisas, que antes não tinha”, resume dona Maria, que, depois que passou a ser a dona da casa, substituiu o trabalho degradante pelo hábito de dançar na sala ao som de Amado Batista, seu artista preferido. Ela conta com entusiasmo a experiência de ter conhecido o Rio de Janeiro e ter visto o mar pela primeira vez na vida. A viagem aconteceu em outubro do ano passado. “Foi a primeira vez que viajei de avião, mas nem tive medo. Era o meu sonho conhecer o Rio. Gostei muito, conheci o Cristo. Antes eu não passeava e não tinha dinheiro para nada.” Após o resgate, dona Maria conseguiu o benefício previdenciário.

Valdirene Boaventura fugiu do cárcere privado, e um juiz avaliou que ela era “quase da família” – Imagem: Geraldo Magela/Agência Senado

O exemplo de dona Maria não é um caso isolado. Pesquisa realizada pela Clínica da UFMG, publicada no livro O Que Escondem as Casas Grandes do Brasil no Século XXI? Um Diagnóstico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Âmbito Doméstico (Expert Editora), mostra que 35,87% dos 92 empregados domésticos (78,3% mulheres) resgatados em condições análogas à escravidão entre 2017 e 2023 começaram a trabalhar com menos de 18 anos de idade e mais de 40% das mulheres só foram resgatadas após os 60 anos. A obra, lançada recentemente, revela que a média de duração do trabalho escravo no âmbito doméstico é de 26,8 anos, tempo mais que suficiente para isolar as vítimas do convívio social e, portanto, comprometer ressocialização delas.

Um dos episódios mais emblemáticos a reforçar essa tese é o de Sônia Maria de Jesus, uma mulher negra, surda, hoje com 51 anos, escravizada por mais de 40 anos na casa do desembargador Jorge Luís Borba, em Santa Catarina. O episódio teve grande repercussão não só no Brasil, mas em todo o mundo, a ponto de a ONU cobrar explicações do governo brasileiro diante das condições aviltantes pelas quais Sônia foi resgatada e pelo fato de a Justiça ter autorizado a volta da vítima para a residência dos antigos patrões, o primeiro caso de “desresgate” registrado no País.

Após 26 anos de servidão, em média, as vítimas recebem indenizações pífias

Sônia foi levada a um abrigo em junho de 2023, depois de uma ação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT). Analfabeta, ela nunca teve acesso à Língua Brasileira de Sinais ­(Libras), o que lhe tirou o direito até se de comunicar – no máximo fazia alguns gestos para se fazer entender por seus patrões. A família Borba nega o tratamento indigno e usou como argumento para o desresgate a dificuldade de adaptação de Sônia no abrigo e uma ação em que o desembargador pedia a adoção socioafetiva dela, uma espécie de filha bastarda, sem nunca ter tido acesso a nenhum direito ou privilégio concedido aos filhos biológicos do casal. Atendendo a um recurso dos acusados, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tardia ação socioafetiva e autorizou a volta de Sônia para a casa dos antigos “empregadores”. A esposa do magistrado, Ana Cristina Gayotto de Borba, foi incluída na lista suja do trabalho escravo, ao lado de outros 154 escravocratas, atualizada e divulgada em abril deste ano pelo governo federal.

Sônia perdeu a audição em consequên­cia de violência que sofria por parte do seu pai. A mãe, buscando proteger a filha, autorizou que uma psicóloga da creche onde frequentava a levasse para cuidar, na certeza de que iria continuar em contato com ela. Nunca mais viu, passou a vida em busca da filha e morreu sem reencontrá-la. Só com a repercussão do resgate a família biológica teve notícia do que acontecera com Sônia e luta na Justiça para recuperar a guarda dela. O caso está no STF e tramita em segredo de Justiça.

As histórias de Maria e Sônia confundem-se com as de outros 90 trabalhadores domésticos resgatados entre 2017 e 2023. A maioria é de mulheres pobres, negras (69,55%), sofrem racismo (14,13%), com escolaridade muito baixa (40,21% são analfabetas) e que começam a trabalhar ainda na infância ou na adolescência, o que configura exploração de trabalho infantil. De acordo com a legislação brasileira, o trabalho doméstico só é permitido a partir dos 18 anos e com todos os direitos trabalhistas garantidos.

Praticamente, metade das vítimas resgatadas nesse período não tinha carteira profissional (48,91%) e 81,52% eram submetidas a mais de uma forma de exploração, das quais 83,69% viviam em condições degradantes, 81,52% tinham jornada exaustiva, 64,13% eram submetidas a trabalho forçado e 5,43% eram privadas de liberdade por servidão por dívida. Apesar de não ser o caso de Sônia, porque a família quer ficar com ela, 43,48% das domésticas resgatadas tinham perdido o contato com familiares.

Foi o que aconteceu também com Madalena Santiago, resgatada em condições degradantes depois de mais de 50 anos trabalhando em uma casa em Salvador. Sozinha e com uma crise de ansiedade que herdou da exploração, ela conta com a assistência do Sindicato das Domésticas da capital baiana. Além das 92 trabalhadoras domésticas resgatadas entre 2017 e 2023, o MTE registrou outros 22 resgates no ano passado, totalizando 114 nos últimos sete anos.

Um dos problemas que se somam à dificuldade de reinserção social dessas trabalhadoras estão as condições do local para onde as vítimas são levadas. Não existe uma política pública específica para acolhê-las. Normalmente, são levadas para abrigos que atendem outros perfis de público, como mulheres vítimas de violência ou dependentes químicos, por exemplo. “Você pega uma pessoa já fragilizada, geralmente com algum problema cognitivo, e coloca num abrigo desses, a gente não está ajudando ela a ser reinserida na sociedade. Precisa de uma atenção especial, porque o caso é diferenciado”, opina Miraglia.

Quatro em cada dez domésticas resgatadas no País entre 2017 e 2023 perderam contato com familiares

“A reinserção das vítimas está prevista na etapa de pós-resgate do Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, com ações conduzidas principalmente pela política de assistência social, em parceria com outros órgãos públicos”, explica Paulo Funghi, coordenador-geral de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Depois de encaminhados para acolhimento institucional, os trabalhadores resgatados passam a ter acesso a benefícios sociais, serviços de saúde, educação e emprego, e emissão de documentos, diz.

O gestor acrescenta que a Defensoria Pública da União e o Ministério Público do Trabalho assumem a judicialização dos casos, quando não resolvidos na via administrativa, e que há um monitoramento da situação das vítimas, feito pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. A assistência social é apontada como importante recurso a ser oferecido às vítimas, já que muitas vezes as indenizações que recebem ­estão muito longe de reparar os anos de escravidão. “Há casos em que a indenização calculada chega a 800 mil, 1 milhão de reais, mas, na hora do acordo, a vítima sai com 20 mil, 60 mil reais, não pode nem comprar uma casa”, critica Valdirene Boaventura, do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Bahia.

A própria Valdirene sentiu na pele o que é ser escravizada. Aos 12 anos de idade, foi para Salvador com a promessa de um emprego doméstico, com os direitos trabalhistas garantidos. Mas não foi bem isso o que aconteceu. Foi colocada em cárcere privado e a trabalho forçado em uma residência por mais de quatro anos. A liberdade só foi conquistada depois que conseguiu fugir e denunciar o caso. A Justiça baiana entendeu que Valdirene era tratada como uma integrante da família e negou-lhe qualquer tipo de indenização.

“Quem analisa o processo e dá a sentença também é empregador. Puxa para o lado do escravocrata, enquanto a vítima não tem seu direito reparado”, acusa a sindicalista. Além de alegar dificuldade para pagar as indenizações, outra justificativa muito comum por parte dos empregadores e acatada pelo Judiciário é a de que as vítimas são tratadas como membros da família, como no caso de Sônia, em Santa Catarina, e dona Maria de Jesus, no Ceará, mais um caso emblemático quando se fala em trabalho escravo doméstico.

Os empregadores de dona Maria de Jesus assinaram um acordo comprometendo-se a pagar uma indenização e várias obrigações trabalhistas à empregada, mantida em situação análoga à escravidão por mais de 40 anos. O acordo foi mediado pelo Ministério Público do Trabalho e homologado pelo Judiciário. Só que, quando o caso chegou à instância criminal, o juiz expediu uma sentença negando a existência de trabalho escravo e, ao contrário, a relação entre as partes “foi construída sobre laços de carinho, respeito e consideração, e os vínculos entre essas pessoas transcenderam qualquer relação de trabalho, configurando-se como uma relação de afeto e pertencimento”.

Na sentença, o magistrado ainda cita o fato de a vítima ter sido madrinha de casamento de um dos filhos da família. “Ser madrinha de casamento é um gesto carregado de significado na cultura brasileira, especialmente em contextos familiares. É inconcebível que pessoas que verdadeiramente reduzem outra a uma condição análoga à de escravo a convidem a dividir os momentos mais especiais de suas vidas e a coloquem em posição de tamanha importância”, diz outro trecho do texto. Só faltou repetir aquele desgastado chavão, de que a empregada era “quase da família”.

Os ex-patrões de Madalena Gordiano foram condenados a 12 anos de prisão, em decisão de primeira instância. É um ponto fora da curva. Raros escravocratas são punidos – Imagem: Gustavo Scatena/Prefeitura de São Paulo e Redes Sociais

Thiago Castro, coordenador nacional do Grupo de Trabalho sobre Trabalho Doméstico do MPT, vê com preocupação a postura do Judiciário ao interpretar alguns dos casos como relação familiar. “Até as altas Cortes vêm acolhendo a tese de que essas vítimas seriam membros da família, e terminam chancelando esse tipo de exploração”, lamenta o procurador.

Para o pesquisador Moisés Pereira da Silva, historiador e professor da Universidade Federal do Norte do Tocantins, esse discurso de “quase da família” tem um peso ideológico que perpassa mais de três séculos de um Brasil escravocrata. “Existem aí um rompimento dos laços com a família biológica e um problema de afeto que é transferido para essa segunda família que supostamente acolhe essa trabalhadora, numa relação de subalternidade. As próprias vítimas naturalizaram a condição de inferioridade e, de certa forma, sentem-se parte dessa família, mesmo elas ficando com as sobras: sobra da casa, sobra da comida e, o mais terrível, essa sobra de afeto”, avalia Silva. “Estamos diante de um modelo que é herança da escravização dos negros africanos. E esse negro que sai da escravidão vai continuar num limbo existencial e econômico. Esses dois momentos históricos, o da escravidão colonial e o da escravidão contemporânea estão completamente conectados.”

Coordenador do programa de enfrentamento ao trabalho escravo do Tribunal Superior do Trabalho, o ministro Augusto César ressalta a dificuldade de se identificar a escravidão contemporânea no âmbito doméstico e salienta que o TST desenvolve uma campanha junto aos tribunais regionais, no sentido de garantir o direito das trabalhadoras resgatadas e punir os empregadores criminosos. “O Brasil tem uma dívida com esse segmento social muito forte e precisa de um compromisso de todos para reverter esse estado de coisas. Muitos normalizam essa situação, acham razoável ter em casa uma pessoa serviçal que supostamente seria parte da família”, diz, citando 23 projetos que estão sendo desenvolvidos nos estados para a formação dos juízes sobre esse tema. “É para que eles compreendam a dimensão do problema, as formas de contornar, de punir os responsáveis, mas também de tentar reverter a situação de precariedade econômica dessas pessoas levadas à escravização.”

Desembargadora federal do trabalho em Minas Gerais e professora de Direito na UFMG, Adriana Goulart ressalta a necessidade de diálogo entre as várias instâncias do Judiciário, como forma de diminuir as aberrações nos julgamentos das ações que envolvem o trabalho escravo doméstico. “Penso que isso pode ser feito por meio de juizados especializados ou por cooperação interinstitucional. A capacitação é imprescindível para todos os que lidam com esse tipo de demanda, porque é preciso ver atrás das lentes embaçadas de um velho Direito Civil que acha que todos são iguais, louros e brancos”, critica. “Há um descompasso entre a academia e a práxis, acredito que a aproximação das Justiças com a universidade pode gerar bons frutos.”

A despeito da falta de diálogo entre as instâncias trabalhistas e criminal nos julgamentos e na ausência de punição criminal dos acusados, o caso de Madalena Gordiano é um ponto fora da curva. Ela foi resgatada em 2020 e ganhou na Justiça do Trabalho uma indenização pelos quase 40 anos de escravidão doméstica, atendendo a uma ação do MPT. Na vara criminal, os ex-patrões de Madalena foram condenados a 12 anos e oito meses de reclusão em regime fechado, mais um ano e 11 meses em regime semiaberto. As duas filhas do casal também foram condenadas nesse primeiro julgamento, ao qual cabe recurso. “Normalmente, o porcentual de condenações na área criminal em relação ao trabalho escravo é muito baixo. Mas, nesse caso de Madalena, temos penas bem significativas, embora a família ainda recorra da decisão. São muitos os desafios, mas também temos tido avanços”, comemora Castro. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida fora da casa-grande’



Fonte ==> Casa Branca

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