Após amargar um oitavo lugar no ano passado, ele diz que aprendizado com artistas mais velhos e conversa espiritual com o homenageado levaram à celebração de um título 100% preto Na última quinta-feira, o carnavalesco da Beija-Flor, João Vitor Araújo, de 39 anos, saiu do barracão da escola por volta das 16h (após fazer ajustes nas alegorias para o Desfile das Campeãs), foi para casa, no Estácio, tomou um banho e se sentou para ver novela.
Megabloco da Anitta: foliões de diferentes nacionalidades e idades se esbaldam ao som de hits da cantora
Leia mais: Anitta homenageia ginástica artística em desfile de megabloco no Rio
— A televisão mostrou a festa na quadra da Beija-Flor, onde eu tinha estado na véspera — lembra ele. — E eu pensei: novela? “Tieta”? Eu vou é para a rua beber, sou campeão! Botei uma roupa e desci, estava rolando a apuração da Série Ouro, todo mundo torcendo para a Estácio; foi ótimo.
Apesar de toda a festa, ele, na última sexta-feira, confessava que a ficha ainda não tinha caído. Nas campeãs, talvez…
— Sofri muito com o oitavo lugar do ano passado — conta ele sobre “Um delírio de carnaval na Maceió de Rás Gonguila”, enredo patrocinado pela capital alagoana.
— Estamos na era do cancelamento, das pessoas sem filtro, né? Sofri vários ataques.
Sempre com um pé atrás
Apesar de todos os beijos e abraços após a vitória da Quarta de Cinzas — e de dez mil seguidores a mais nas redes sociais —, João Vitor olha tudo com um pé atrás.
— Sou de peixes, analiso muito — define. — Sei que a mão que faz carinho é a mesma que bate.
Em 2024, ele lembra que teve boas notas nos quesitos diretamente ligados a seu trabalho, mas os haters não se dão ao trabalho de verificar:
— Acham que até o pneu do carro alegórico é responsabilidade do carnavalesco.
Do trauma em seu primeiro ano de Beija-Flor veio uma notícia animadora: a escola não cogitou sua demissão, apesar da má colocação (a máquina de títulos da Baixada só ficou fora do grupo dos seis primeiros quatro vezes em 40 anos).
— Aquele era um enredo patrocinado por uma cidade, já estava decidido quando eu cheguei à escola – lembra ele, mencionando a expressão “enredo CEP”, popular em determinada época, quando cidades, estados e países investiam nas escolas para que estas os retratassem em seus desfiles. — É uma coisa que não se faz mais; tive que dar uma rebolada para tirar um enredo de Maceió.
No caso de “Laíla de todos os santos, Laíla de todos os sambas”, João Vitor estava lá desde o começo e conhecia o homenageado.
— Ele me chamou para uma reunião em 2017 — conta o carnavalesco. — Quando cheguei ao barracão, vi que era para assinar o contrato para ser o carnavalesco, mas eu estava fechado com a Unidos de Padre Miguel. Ali conheci Laíla, superficialmente, e fiquei amigo do presidente da Beija-Flor, Almir Reis.
O mesmo Almir comunicou a ele que Laíla seria o enredo, sete anos depois e três após a morte do diretor, durante a pandemia de Covid-19, em 2021.
Sonho com homenageado
Um pouco assustado com a responsabilidade, João Vitor sonhou com o homenageado na noite em que soube que contaria sua história na Avenida.
— Estávamos na Apoteose, ele sorria e fazia um gesto positivo, logo ele, que não era muito de sorrir — conta o artista, que viu até a roupa de Laíla. — Ele estava com uma camisa de botão branca, com detalhes em verde e amarelo, que logo me disseram que era a do enredo de 2018, do último título da escola antes deste.
“Aprovado” pelo homenageado, ele partiu para o trabalho.
— O sonho foi o combustível — define. — Eu sou do candomblé, respeito muito a ancestralidade.
Daí veio toda a parte religiosa do desfile, além de partes do samba-enredo como o refrão: “Da casa de Ogum, Xangô me guia/ Dobram atabaques no quilombo Beija-Flor/ Terreiro de Laíla, meu griô”.
— Laíla era um homem objetivo, não era de nhenhenhém — lembra o carnavalesco. — Eu tinha que fazer um desfile objetivo, sem floreios, com a cara dele e da Beija-Flor.
Rosa Magalhães: saudade da professora
Além de conversar espiritualmente com Laíla, João Vitor e a equipe de pesquisa da Beija-Flor foram entrevistar família, amigos e colegas do antigo diretor.
— Foi um enredo baseado na oralidade, já que não existe um livro sobre o Laíla — conta ele. — “Maravilhosa e soberana”, do jornalista Aydano André Motta, sobre a Beija-Flor (coleção Cadernos de Samba, da editora Verso Brasil), ajudou muito, mas tem só um capítulo sobre ele.
Dentre os depoimentos de cerca de 40 pessoas — todos registrados, esperando um documentarista —, um teve especial valor para ele.
— Rosa Magalhães falou com a gente por quatro horas, lembrando a época em que trabalhou com Laíla no Salgueiro, nos anos 1970 — diz João Vitor, que assinou ao lado da professora “Mogangueiro da cara preta”, no Paraíso do Tuiuti, em 2023, conseguindo um oitavo lugar, a segunda melhor colocação da escola de São Cristóvão em sua história. — Ela morreria pouco depois, em julho do ano passado. Tenho saudades todos os dias.
A vitoriosa carnavalesca de Imperatriz Leopoldinense, Vila Isabel e Império Serrano, além da abertura dos Jogos Olímpicos Rio-2016, entre outros grandes eventos, morreu aos 78 anos e é uma das referências de João Vitor.
— Tenho paixão por Joãosinho Trinta e Viriato Ferreira e sou discípulo da Rosa, do Alexandre Louzada, do Max Lopes e de outros com quem trabalhei e aprendi muito — diz ele.
Em defesa dos enredos afro
Uma de suas parcerias (na Portela, campeã em 2017) foi com Paulo Barros, que criou uma polêmica nas vésperas do carnaval ao dizer que enredos afro eram todos iguais e de difícil compreensão pelo público.
— O resultado final do carnaval já diz tudo – define. — Seis enredos pretos (de Beija-Flor, Grande Rio, Imperatriz, Portela, Viradouro e Mangueira), cada um com suas características, todos diferentes entre si. Claro que teve jurado (Ana Paula Alves Fernandes, a mesma que esqueceu de escrever três notas no último dia) tirando ponto da Unidos de Padre Miguel por “excesso de termos em iorubá” na letra do samba. Isso, infelizmente, sempre aconteceu e sempre vai acontecer. Temos que trabalhar para que melhore.
A vitória da Beija-Flor, na opinião dele, é histórica também por isso.
— Uma escola com um presidente e um carnavalesco pretos retintos, falando de um homem preto — conta ele, o primeiro a vencer pela agremiação assinando um enredo sozinho desde Joãosinho Trinta, em 1983, com “A grande constelação das estrelas negras”. — Acho que vai demorar muito até isso acontecer de novo.
Fonte ==> Folha SP e Globo
