Tá dose vivenciar a destruição de tudo o que os Estados Unidos tinham conquistado de bom. Depois de passar cem dias escrevendo no Brasil, voltar para a realidade vermelho-laranja que só faz espalhar retrocesso tem me levado às lágrimas na minha casinha em Nashville. Minha colega em Washington DC, cientista brasileira de altíssimo renome, me escreveu dizendo que vai fazer as malas ano que vem, e que tem chorado todos os dias.
O mais triste ainda é que a gente chora, mas logo se acostuma com a nova realidade, porque o que não tem jeito resolvido está (até a próxima eleição). É uma faca de dois gumes esta capacidade do cérebro de se recalibrar e seguir adiante, quando não está ao nosso alcance mudar a situação. Por um lado, o “seguir adiante” é ótimo, porque a alternativa é paralisia; mas por outro, o risco é a complacência, justamente a aceitação que os agentes da situação querem.
Mas vamos focar na parte boa, que é a importância de respirar fundo e seguir adiante apesar dos pesares. Aprendi com a minha leitura do dia que é isso, afinal, o que existe por trás da analgesia psicológica, ou placebo, que é a redução da sensação de dor só porque disseram pra gente que o creminho (ou beijinho) no machucado ia funcionar. A mesma parte do cérebro que organiza comportamentos em resposta a dor e ao estresse (e ao estresse da dor) também é capaz de reduzir a sensação de dor.
Em um estudo publicado na revista Science, o laboratório de Luke Henderson, na Universidade de Sydney, na Austrália, estuda em voluntários humanos a ativação da grísea periaquedutal, apelido poético para “a substância cinzenta que circunda o aqueduto cerebral”. A grísea periaquedutal, que faz a gente reagir com recuo ou agressividade ao estresse de ameaças ao corpo, ao mesmo tempo reduz proativamente a sensação de dor que vem dele, quando a dor é resultado das nossas ações. Essa analgesia proativa facilita a ação que nos livra de ameaças e nos tira de emboscadas, e explica como a mãe toda arrebentada ainda assim arrasta os filhos para um lugar seguro e só então sucumbe.
A analgesia placebo, por sua vez, é resultado da nossa ação mental de acreditar que estamos fazendo alguma coisa para enfrentar o estresse —mesmo quando a “alguma coisa” é um creminho inócuo e o estresse é um bastão quente se aproximando da gente.
A equipe de Henderson demonstra que na metade dos voluntários para quem o creminho placebo alivia a dor, a grísea periaquedutal responde ao toque do bastão quente com menos atividade, o que leva a mais atividade de outra parte do cérebro que, por sua vez, suprime os sinais de dor logo na sua entrada pela medula espinal. Quanto mais intensa a resposta dessas estruturas, mais forte é o efeito analgésico.
Por que não funciona na outra metade dos voluntários? Porque a analgesia placebo é na verdade analgesia por expectativa e, portanto, depende de experiências anteriores. E porque, segundo o estudo, nas pessoas para quem a expectativa do creminho não funciona, a grísea periaquedutal responde ao contrário, com ainda mais atividade.
Abrandar a dor em resposta a nossas expectativas quanto a estresses às vezes ajuda. Nas outras vezes, com sorte é a dor que justamente nos faz mudar a situação.
Referência
Crawford LS et al. (2025) Somatotopic organization of brainstem analgesic circuitry. Science 389, eadu8846.
Fonte ==> Folha SP