A importância do julgamento de Jair Bolsonaro e outros, que começou ontem, extravasa em muito as fronteiras do Brasil. A razão é simples: o que está em jogo no Supremo Tribunal Federal é a escolha entre a ética de fazer algo em defesa da democracia, mesmo arriscando falhar, e a de nada fazer e nunca acertar.
Esse tem sido o dilema central da defesa da democracia pelo menos na última década. Só por isso, este já seria o julgamento da década. Mas como a questão do colapso das democracias é antiga —vem já consagrada desde Platão e Aristóteles— e na nossa modernidade ela tem um paralelismo evidente com o fim dos regimes democráticos cem anos atrás, este julgamento poderá ficar na história para lá do futuro próximo.
É que pela primeira vez no atual ciclo político global, um país e as suas instituições escolhem responder pela afirmativa ao dilema, apresentando o argumento mais forte possível a favor de fazer algo, mesmo arriscando falhar.
Não é a primeira vez que apresento o argumento neste termos. Numa coluna já antiga, sobre o que o mundo poderia aprender com a forma como o Brasil lida com o 8 de janeiro, por contraste com a forma com que os Estados Unidos (não) lidaram com o 6 de janeiro, escrevi que essa era a diferença entre uma visão da democracia militante e outra da democracia neutra.
A primeira acredita que a democracia tem de se defender a si mesma, ao passo que a segunda acredita que a democracia é um recipiente vazio no qual todas as ideias cabem, incluindo as antidemocráticas, anti-Estado de direito e anti-direitos fundamentais.
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Mas aqui quero ir um pouco mais fundo e tentar entender por que razão a maior parte do mundo tem optado por, em plena emergência de novos autoritarismos, seguir o caminho da democracia neutra, mesmo quando, em teoria, defendem militantemente a democracia.
Embora as consequências dessa opção neutra sejam péssimas, acredito que não é por uma má razão. Vem à mente o famoso verso de William Butler Yeats sobre “aos bons faltarem todas as convicções, ao passo que os maus estão cheios de uma apaixonada intensidade”. Estamos numa época dessas. Os bem-intencionados estão roídos de dúvidas. E se agirmos, o que acontece? Será que os fascistas vão se vitimizar? Será que vão ficar mais fortes? Do outro lado, nenhuma dúvida, só fanáticas certezas.
Vi esse movimento desde o seu início. Em 2010 comecei a seguir a guinada autoritária na Hungria, precursora de todas as que se lhe seguiram, e pouco depois fui nomeado relator do Parlamento Europeu para os problemas do estado de direito, democracia e direitos fundamentais naquele país. No relatório que fiz e que foi então aprovado, estava claro que se a investida de Viktor Orbán prosseguisse, a União Europeia deveria acionar contra ele o Artigo 7º do Tratado da UE, retirando-lhe o direito de voto no Conselho Europeu. Mas o medo da vitimização de Orbán falou mais alto. Nada foi feito.
Onde a Europa falhou por não fazer, espero que o Brasil agora acerte, tentando fazer. A democracia não é perfeita e a defesa da democracia pode também não o ser. Mas são muito melhores do que a alternativa.
Fonte ==> Folha SP