28 de julho de 2025

Caos no abastecimento de água no Rio de Janeiro é resultado das concessões de saneamento, avalia pesquisadora

Para a especialista em saneamento básico Suyá Quintslr, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), a chamada “crise hídrica” é, na verdade, consequência da gestão das empresas privadas que passaram o operar o serviço depois da privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae).

“Nem chamaria de crise hídrica o que a gente vive hoje no Rio de Janeiro porque é um problema de gestão que já se esperava que ocorreria com as concessões de saneamento”, afirma a coordenadora do Laboratório de Ecologia Política da Água (Ecoágua/UFRJ). 

O leilão da Cedae, realizado em 2021 pelo governador Cláudio Castro (PL) do então presidente Jair Bolsonaro (PL), entregou a distribuição de água potável para a iniciativa privada. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora do IPPUR reflete que, desde então, as sucessivas falhas no abastecimento, aplicação de multas e aumento de tarifa colocam em risco a população mais vulnerável. “Essa população ou está recorrendo a poços, que a gente não sabe a qualidade, ou está furtando água de alguma forma. Viver sem água ninguém vive”, afirma.

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Ainda assim, são muitos os interesses de grupos financeiros com uma possível abertura de capital do que restou da Cedae pública. Uma privatização da captação e do tratamento da água que chega nas torneiras da população fluminense representa um grave risco para a segurança hídrica no estado. O alerta parte tanto de pesquisadores como de movimentos sociais populares pelo direito à água.

Na outra ponta fica a população que percebeu a piora no serviço de distribuição e manutenção de rua prestados pelas concessionárias. A professora Quintslr, que também faz parte do Observatório Nacional pelos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), analisa esse cenário de caos instaurado com a privatização do setor.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – Quais os possíveis impactos de uma privatização da produção de água no Rio de Janeiro?

Suyá Quintslr – Ainda está um pouco incerto qual vai ser o modelo dessa privatização da produção de água, do que restou da Cedae pública, mas provavelmente vai ser via abertura de capital.

O risco disso é passar para grupos privados que não estão comprometidos com a segurança hídrica do estado ou com direito humano à água e saneamento. E que querem utilizar essa infraestrutura, mais uma vez, para valorizar o seu capital.

Muitos desses grupos que tem interesse no saneamento no Rio de Janeiro são os mesmos que estão também pegando concessões em outros estados. São grupos formados por empresas que muitas vezes nem tem a ver com saneamento. São fundos de pensão, fundos de investimento. 

O que isso representa para a segurança hídrica no estado?

A produção de água para a região metropolitana é bastante sensível porque são grandes sistemas do qual grande parte da população depende. O Guandu, por exemplo, atende mais de 9 milhões de pessoas na região metropolitana do Rio de Janeiro. 

Qualquer falha nesse sistema, qualquer problema nessa captação e tratamento é um risco de desabastecimento de uma grande parte da população.

A crise hídrica no RJ tem relação com a entrega do serviço para empresas privadas?

O que a gente tem visto hoje eu nem chamaria exatamente de uma crise hídrica porque o que a gente tem mesmo é um problema de gestão. É o que já se esperava que ocorreria com as concessões de saneamento. 

Por um lado temos algumas melhorias pontuais no esgotamento. O desvio do Rio Carioca, por exemplo, feito em grande parte pela Cedae, mas nunca tinha sido concluído. O Rio Carioca, que deságua na praia do Flamengo, foi desviado para o emissário submarino de Ipanema e isso ocasionou uma melhoria na balneabilidade de algumas praias da Baía de Guanabara, principalmente a praia do Flamengo, Prainha da Glória, a praia de Botafogo em algumas ocasiões tem estado liberada para banho. O tratamento de esgoto na ilha de Paquetá também teve algumas melhorias pontuais.

Mas em relação à água potável, o que a gente vê é uma multiplicação de conflitos com a população no Rio de Janeiro. Seja pela troca de hidrômetros, que foi algo que foi priorizado pelas empresas, que precisam medir e cobrar para ter receita e lucro, e depois distribuir dividendos para seus acionistas, seja pela cobrança de multas.

As concessionárias levaram os hidrômetros para fora das casas, quebraram as calçadas e não recuperaram. Tudo isso a gente viu a população reclamando. E em seguida, a aplicação de muitas multas. 

A conta d’água subiu muito, as empresas começaram a cobrar multas por não pagamento, por corte, por quebra de lacre de hidrômetro, sendo que muitas vezes esse hidrômetro já estava na calçada e a pessoa não pode se responsabilizar pelo hidrômetro que não está dentro da sua propriedade.

Leilão da Cedae foi o maior do segmento e teve apoio do governo Bolsonaro. | Reprodução

Até que no final do ano passado a gente teve aquele caos completo no abastecimento que o Rio de Janeiro ficou quase 10 dias sem água por conta inicialmente da manutenção programada do Guandu, que acontece todo ano, mas, ao mesmo tempo, a Águas do Rio e outras concessionárias resolveram fazer reparos em suas adutoras, atrasaram as obras, começaram a romper várias adutoras e a população não teve o retorno da água naqueles dois ou três dias.

Como esses problemas sucessivos afetam a população no curto prazo?

Se tornou muito complexo esse sistema de gestão com a produção de água com a Cedae e com empresas atuando no estado. 

São quatro contratos de concessão regionalizada de saneamento e o município do Rio de Janeiro, por exemplo, foi dividido entre os quatro blocos. Então a gente tem dois blocos geridos pela Águas do Rio, mas que são contratos distintos; a Iguá, na Barra da Tijuca, Recreio, e dois municípios do interior; e a Rio + Saneamento, ainda com agravante que na área da Rio+, que é a AP5, a gente tem a Zona Oeste Mais Saneamento. 

A população não sabe nem para quem reclamar. Teve um problema na água, a população fica muito perdida de quais são os seus direitos, do que ela pode exigir, se teve uma aplicação de multa indevida.

As multas estão se multiplicando, as empresas cobram multas que muitas vezes a Cedae não cobrava, e com valores exorbitantes.

A população acaba ficando sem água do sistema público, porque é um serviço público sendo prestado por empresas privadas. Só que ninguém fica exatamente sem água. Essa população ou está recorrendo a poços, que a gente não sabe a qualidade, ou está furtando água de alguma forma. Viver sem água ninguém vive.

Estamos empurrando uma parte da população seja para ilegalidade, para uma situação de vulnerabilidade em relação a essa qualidade da água. Provavelmente para as duas situações.

Quais os caminhos possíveis para reverter essa crise de abastecimento?  

Sou politicamente contrária à privatização dos serviços. É claro que para evitar esses problemas a gente precisa de uma melhor regulação, participação social, etc. São muito importantes. 

Mas, para mim, os serviços deveriam ser geridos por empresas públicas ou autarquias, e que poderiam ser estaduais, como a Cedae, mas também consórcios municipais, como a gente já teve algumas experiências, ou mesmo autarquias municipais de água. 

E não empresas que estejam vendo esses serviços apenas como investimento e vão ter um reinvestimento menor dos lucros. Algumas das empresas estão distribuindo dividendos para os seus acionistas acima do mínimo exigido. A gente sabe que tem uma dificuldade nessa gestão privada da água.

Que interesses estão por trás da privatização da água no RJ? 

Os interesses na privatização dos serviços de água e saneamento são vários. Para uma empresa, é um investimento, de certa forma, visto como muito seguro. Porque você está gerindo uma infraestrutura da qual a população depende integralmente. 

Se eu moro no bairro do Flamengo, por exemplo, sou atendida pela Águas do Rio. Não posso estar insatisfeita e resolver ser atendida pela Iguá ou pela Cedae.

Todos os moradores de uma área de concessão são obrigados a se conectar, em primeiro lugar, e são obrigados a pagar uma tarifa mínima de água e esgoto, mesmo que não utilize. Mesmo se não utilizar, no Rio de Janeiro se paga um valor de tarifa mínima. Então, a remuneração [para as empresas] é muito certa.

Claro que tem a inadimplência, mas é um bem fundamental do qual ninguém vive sem. Então vários grupos financeiro têm interesse nessas concessões.

É possível fazer um paralelo com outros países?

O que a gente vem observando em alguns países é uma tendência de remunicipalização dos serviços. A gente tem uma tendência na França que é o berço das grandes companhias privadas de água, mas vários municípios, como Paris e Lyon, que já remunicipalizaram os serviços de água.

Isso vem acontecendo também na Alemanha, na Bolívia, em diversos países do mundo, em todos os continentes, e por motivos distintos. Em alguns casos é porque as empresas de fato não conseguiam atender a população, aumentavam tarifas, mas não atendiam uma parte da população, principalmente a população que vive nas periferias metropolitanas. 

Foi o caso da Argentina que privatizou, depois reestatizou e agora o Milei fala novamente em privatizar a AySA [Agua y Saneamientos Argentinos]. 

Mas o que a gente vê em geral é uma tendência a remunicipalização. Onde estou vivendo agora, em Montevidéu, nos anos 2000 alguns serviços de água privatizados geraram muita insatisfação pela qualidade dos serviços. Isso provocou uma mobilização social grande. Eles utilizaram o mecanismo de referendo para fazer uma reforma constitucional e proibiram a participação de atores privados na gestão de água e saneamento aqui no Uruguai.

Então, a partir de 2004, quando aconteceu o referendo, entrou o artigo 47 da Constituição uruguaia que, além de uma série de outras medidas, proíbe a participação privada nos serviços de saneamento.

Foi um processo que demorou ainda alguns anos, mas os serviços voltaram para gestão estatal, e hoje em dia todo o país é atendido pela OSE [Obras Sanitárias del Estado], que é uma empresa pública uruguaia.



Fonte ==> Brasil de Fato

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