24 de abril de 2025

‘Cidade de data centers’ no RS pode gastar mais energia que 40 milhões de pessoas – Brasil de Fato

Um ano depois da enchente que arrasou municípios inteiros no Rio Grande do Sul, o governo do estado aposta as fichas da reconstrução em um empreendimento tecnológico bilionário que entusiasma políticos e empresários, mas preocupa técnicos e ambientalistas. 

Uma “cidade de data centers”, maior complexo de infraestrutura digital da América Latina, deverá ser erguida pela empresa Scala em Eldorado do Sul, município completamente devastado pela subida das águas em maio de 2024. Os data centers abrigam servidores de armazenagem e processamento de dados — e vêm crescendo em importância com a popularização da inteligência artificial.

“É a oportunidade de transformar o Rio Grande do Sul no novo Vale do Silício no Brasil”, comemorou o secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado, Ernani Polo (PP), em outubro.

O Scala AI City, como está sendo chamado o empreendimento em Eldorado do Sul, é superlativo: o investimento inicial é de R$ 3 bilhões, podendo chegar a um total de R$ 500 bilhões, segundo dados divulgados pelo governo do estado. A título de comparação, o maior investimento privado da história do Rio Grande do Sul alcançou R$ 24 bilhões: a ampliação de uma fábrica de celulose da chilena CMPC, em 2024.

Apesar do entusiasmo, o potencial impacto da atividade acende um alerta. Segundo uma lei municipal aprovada sob medida para o empreendimento, o licenciamento “se dará de forma simplificada e autodeclaratória”. Não há, ainda, regras para licenciamento ambiental de data centers na legislação estadual do Rio Grande do Sul, nem no Brasil.

Em geral, data centers exigem volumes significativos de energia e água para sua operação e para o resfriamento dos equipamentos. Outro componente que infla a pegada ambiental é o lixo eletrônico gerado pela alta demanda das máquinas.

O Scala AI City contará com uma “capacidade de TI” de 4,75 GW quando estiver funcionando a pleno vapor. De acordo com demonstrativo financeiro da empresa responsável pelo empreendimento, é uma cifra “impressionante”. 

Entretanto, segundo o professor Ricardo Soares, coordenador do mestrado em ciência do meio ambiente da Universidade de Veiga de Almeida e servidor do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro, “os 4,75 GW dizem respeito à demanda de energia elétrica que o complexo de data centers deverá consumir em seu pico operacional, e não à sua ‘capacidade de processamento de dados’ propriamente dita”. Segundo o pesquisador, essa energia será utilizada tanto para o funcionamento dos servidores quanto para os sistemas de resfriamento da cidade das máquinas.

Para se ter uma ideia, trata-se de um número superior ao da capacidade de geração da quarta maior hidrelétrica do Brasil — a usina de Jirau, uma gigante amazônica de 3,7 GW construída no rio Madeira, em Rondônia, que fornece energia elétrica para 40 milhões de pessoas.

Em nota enviada à reportagem, a Scala Data Centers assegura que, apesar do imenso volume de eletricidade requerido pelo projeto, a operação “não teria qualquer efeito no abastecimento elétrico da cidade ou de municípios vizinhos”, e que a “energia utilizada será 100% renovável e certificada, com fornecimento garantido por parcerias estratégicas”. A empresa, no entanto, não informou de onde exatamente virá a energia demandada pelo polo de data centers.

“Esse tipo de impacto precisa ser previsto no licenciamento, é importante que não haja isenção desses estudos para qualquer empreendimento, porque depois quem vai precisar pagar para corrigir e mitigar os impactos é a sociedade, os governos. É uma questão de economia e de justiça”, observa o hidrólogo Iporã Brito Possantti, que durante a enchente de 2024 desenvolveu com colegas da Ufrgs um site com dados e mapas para ajudar gestores públicos no enfrentamento da crise.

O debate reverbera em nível nacional, já que o Brasil se posiciona como “a nova fronteira” do setor, mas não tem regras claras para o licenciamento ambiental de data centers. “Não podemos simplesmente achar que uma inovação tecnológica, que é bem-vinda e necessária, está desprovida de impacto”, explica o professor Ricardo Soares.

A empresa garante que o Scala AI City será erguido sob os “mais altos padrões de sustentabilidade, inovação e governança”. Em nota afirma que “cumpre rigorosamente todos os requisitos legais em todos os seus empreendimentos”, e garante que o licenciamento seguirá a mesma conduta. A íntegra do posicionamento pode ser lida aqui.

Eventos extremos colocam a viabilidade de data centers em xeque

Se tudo der certo, no seu auge, a cidade de data centers estará processando 4,75 GW em dados — o que a transforma “em um dos maiores polos de processamento de dados do mundo”, observa a Scala Data Centers. Na largada, já serão 54 MW, metade da capacidade atual instalada da empresa no Brasil, que atualmente é de 102 MW, dividida em 10 data centers.

Apesar da lei municipal simplificando o licenciamento, a prefeita de Eldorado do Sul, Juliana Carvalho (PSDB) garante “que vai olhar para todos os detalhes do empreendimento”. “Qualquer intervenção tem algum impacto. O trabalho da prefeitura tem que ser amenizar isso de alguma forma, mas sem prejudicar o investimento e o desenvolvimento do município”, completa.

A escolha do Rio Grande do Sul e de Eldorado para receberem a cidade de data centers é justificada por fatores ligados ao “maior desafio para o setor, especialmente com a ascensão da IA”, conforme a própria Scala Data Centers: a demanda energética. Segundo a empresa, Eldorado do Sul possui “uma robusta estrutura de transmissão, com uma subestação de capacidade de até 5 GW — a esmagadora maioria não utilizada”.

O clima considerado mais ameno do sul do país contribui, de acordo com o governo do Estado. Em tese, temperaturas mais baixas reduzem a necessidade de energia elétrica para resfriamento dos servidores. Mas, em fevereiro, Porto Alegre, a apenas 12 quilômetros de Eldorado, bateu dois recordes de calor, tornando-se a capital brasileira mais quente no período. Em março, a temperatura na cidade ficou 7,3ºC acima das médias históricas.

O Brasil se tornou um destino potencial para a instalação de data centers justamente por ter uma matriz energética considerada limpa, em função do grande peso das hidrelétricas. Mas o contexto de mudanças climáticas, com a intensificação dos períodos de seca, faz soar alertas. A Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia, ressalta em seu anuário que “em 2021, o país atravessou a pior seca dos últimos noventa anos” e “o ano de 2023 foi de clima mais quente e seco”.

Atualmente, o Rio Grande do Sul ocupa a segunda posição no ranking de ocorrências de estiagens e secas no país, atrás somente da Bahia. Em 2025, 307 municípios gaúchos (61% do total) decretaram situação de emergência devido à falta de chuvas. No Uruguai, a crise hídrica de 2023 levou a população a protestar contra o Google, que tem um data center no país, depois que a população precisou ser abastecida com água salgada para beber.

“Data centers consomem muita água. Isso é um problema porque a escassez de água está se tornando uma das principais razões de conflitos no mundo”, alerta Golestan Radwan, diretora geral do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

A Scala diz que usa “tecnologias de resfriamento sem desperdício de água no resfriamento”, e que não há “necessidade de reposição, mas apenas uma carga inicial no sistema”. Na nota enviada à reportagem, a empresa não respondeu qual a carga prevista para a cidade de data centers em Eldorado.

Segundo uma pesquisa do Morgan Stanley, data centers são responsáveis por uma parcela significativa das emissões globais de gases de efeito estufa — em muitos casos, provocadas pelo uso de geradores de energia movidos a óleo diesel, acionados em momentos de escassez hídrica. Por outro lado, um relatório do Banco Mundial alerta que enchentes podem aumentar ainda mais os gastos com energia dessas infraestruturas. 

Em 2024, Eldorado teve a totalidade de sua área urbana atingida pela enchente — consequência da crise climática planetária, segundo a ONU.  Cerca de 32 mil das 39 mil pessoas que vivem no município tiveram que sair de suas casas.

O terreno de onde será erguida a cidade dos data centers permaneceu intacto. No início de abril, escavadeiras arrancavam centenas de pés de eucalipto dos 535 hectares da empresa, em Eldorado — antes da chegada da Scala, utilizados para fabricação de lenha. “Temos que terminar até o fim do mês, para entregar definitivamente para o novo dono”, disse um operador, enquanto esvaziava rapidamente sua marmita dentro de uma caminhonete, no horário do almoço.

Licenciamento ambiental não contempla data centers

Por enquanto, as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente e do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul não preveem normas para o licenciamento de data centers no país e no Estado. 

No RS, a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental do Rio Grande do Sul) já sugeriu a criação do “ramo data center” no ordenamento legal de licenciamento. “Isso vai regrar e alinhar o enquadramento e deixar clara a competência municipal e estadual em relação ao licenciamento dos empreendimentos”, explica a Fepam, em nota, que pode ser lida aqui. Mas não há previsão de quando o processo será concluído.

Em agosto do ano passado, o governo federal apresentou o “Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028”, que prevê investimento de R$ 5 bilhões ao eixo “infraestrutura e desenvolvimento da IA”. O governo também anunciou um marco legal para os data centers no Brasil, mas a medida ainda não foi publicada. 

“São muitas lacunas. Não podemos desburocratizar aqui para acelerar o desenvolvimento sem olhar para os impactos”, alerta Ricardo Soares, que defende que a inclusão do ramo data centers também em âmbito nacional.

A secretaria de Desenvolvimento Econômico do RS informou que “o Estado já levou ao governo federal a pauta que visa criar um ambiente regulatório favorável aos data centers e às questões ligadas à inteligência artificial. Caso se efetive, será uma conquista que beneficiaria todo o país”. Mas não se manifestou sobre riscos e impactos ambientais.

“Se não construirmos imediatamente este ambiente favorável, corremos o risco de ver a transição energética acontecer em outros países, deixando-nos para trás. Agir agora é crucial para garantir que o Brasil não fique no final da fila nesta importante transformação global”, disse o governador Eduardo Leite (PSDB), em setembro.

Naquele mesmo mês, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente fez uma recomendação para que os países padronizam procedimentos para medir o impacto da inteligência artificial, incluindo a extração de minérios para a construção da infraestrutura e o treinamento dos sistemas de processamento de dados, além do consumo de água e energia elétrica.

“Atualmente, cada um mede e quantifica [os impactos] da forma que acha melhor e adota as medidas que considera adequadas. Mas é muito difícil avaliar a eficácia dessas medidas, porque não existe um método consensual”, reforça a especialista da ONU, Golestan Radwan.  “Devemos falar sobre como garantir que a transformação digital seja ambientalmente sustentável”, finaliza.

Artigo original publicado em Repórter Brasil.



Fonte ==> Brasil de Fato

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