Em meio ao impasse nas negociações de cessar-fogo na guerra da Ucrânia, a Rússia mantém suas ações militares, reorganiza as tropas na linha de frente e planeja nova ofensiva na Ucrânia para os próximos meses.
No início de abril, autoridades ucranianas observaram o dobro de ações militares russas, comparado com o início do ano. O aumento da atividade de combate ocorreu em quase todas as áreas da zona de operações militares. Ao mesmo tempo, a Rússia acelera a retomada de controle da região de Kursk, o que lhe dá possibilidade de se reorganizar na linha de frente para novas investidas contra a Ucrânia.
A Rússia tem concentrado forças perto de áreas controladas pela Ucrânia, especialmente na região de Sumy. Em meados de abril, Moscou lançou um grande ataque no local, que deixou mais de 30 mortos e 119 feridos. E, de acordo com os últimos relatórios apresentados pelo Ministério da Defesa da Rússia, Moscou tem aumentado os combates nas direções das regiões de Kupyansk e Krasnolimansk, mais ao sul da linha do front, o que representa uma redistribuição das suas forças ao longo da linha de contato.
Ao mesmo tempo, a escalada ocorre em meio ao impasse nas negociações por um cessar-fogo. Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, aponta que as movimentações do exército russo são uma continuidade da estratégia de avanço militar sobre os pontos fracos ucranianos e não depende das movimentações políticas referentes às negociações de paz.
“Como o processo de paz por enquanto não está tendo sucesso, existe a lógica militar, separada da lógica política. Então, independente do que esteja acontecendo, os militares têm os seus planos, seus objetivos e tarefas para a campanha do verão [do hemisfério norte]. Os militares têm sua própria lógica, que não necessariamente corresponde às declarações políticas, então se a Rússia enxergar partes fracas da defesa ucraniana em outras regiões, ela claramente vai realizar uma ofensiva ali”, afirma.
Após retomar grande parte da região de Kursk, que havia sido ocupada pela Ucrânia no ano passado, a Rússia começou a reagrupar suas tropas, com possibilidade de enviá-las para outras áreas. Com a retomada do controle de Sudzha, a principal cidade da região, forças russas foram liberadas e agora podem ser usadas em uma nova ofensiva contra a Ucrânia. Ao mesmo tempo, o exército ucraniano também se reorganiza ao longo da linha de frente, deslocando contingentes de Kursk para a defesa de outras partes da linha de contato.
Oleg Ignatov argumenta que, com essa dinâmica, não devemos esperar grandes mudanças em termos de conquistas territoriais, “a menos que o nível de esgotamento do exército ucraniano aumente consideravelmente. Ou seja, se as forças ucranianas se mantiverem no patamar que estavam no ano passado, provavelmente tudo acontecerá em um ritmo lento. O exército russo tem os seus objetivos, mas, como no ano passado, eles estão bastante limitados. Se tiverem resultados significativos, isso se dará por conta do esgotamento do exército ucraniano”, acrescentou.
As perspectivas de uma nova ofensiva russa refletem a dinâmica que tomou parte de todo o conflito: de uma ‘guerra por esgotamento’. Ou seja, os combates ocorrem de maneira lenta, sem grandes avanços, com as duas partes apostando no desgaste das tropas do adversário. Nesse cenário, o fator que pode mudar de maneira mais significativa o campo de batalha é a diminuição do apoio dos EUA à Ucrânia.
“Agora o que acontece são os fornecimentos de armas aprovados por Biden, os contratos de longo prazo ainda em vigor, mas se não houver mais ajuda americana, está claro que haverá um buraco muito grande. E se não mudar, se Trump não oferecer nada à Ucrânia, e a Europa continuar ajudando a Ucrânia, ainda assim haverá esse ‘buraco’, um déficit de armamento. É uma questão de tempo isso se refletir na frente de batalha, uma questão de alguns meses”, completa Oleg Ignatov.
Fragilidade dos processos de paz
Paradoxalmente, o reforço das atividades ofensivas da Rússia e a expectativa para um aumento das suas operações militares no campo de batalha acontece em um momento em que mais se falou em perspectivas de cessar-fogo e negociações em todo o conflito nos últimos anos. Isto, por um lado, revela justamente a fragilidade dos processos de busca por um cessar-fogo.
Vale lembrar que os poucos e tímidos acordos alcançados entre Kiev e Moscou, por intermédio de Washington, sobre a trégua no Mar Negro e a suspensão de ataques a infraestruturas energéticas russo-ucranianas, não tiveram sucesso.
O cessar-fogo marítimo não chegou a entrar em vigor diante das condições que o presidente russo, Vladimir Putin, impôs, e a trégua energética também foi diversas vezes violada por ambas as partes. E mesmo o anúncio de Putin de um cessar-fogo temporário de 30h durante a Páscoa no último fim de semana não surtiu efeito, com ambas as partes se acusando mutuamente de violar a trégua.
A realidade política que se impõe é de uma desconfiança mútua entre Rússia e Ucrânia de que um cenário de suspensão de ações militares sirva para a reorganização das tropas para voltar a atacar mais fortemente em um momento posterior.
Um relatório apresentado na última terça-feira (22) pelo Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) aponta que um possível acordo para congelar a frente nas posições atuais pode não impedir a Rússia de novas agressões. De acordo com o estudo, o Kremlin poderia usar o cessar-fogo para se reagrupar e perseguir ambições territoriais maiores, principalmente se a ajuda militar ocidental à Ucrânia for reduzida.
“A atual linha de frente não oferece a profundidade estratégica que a Ucrânia precisa para se defender de forma confiável contra novas agressões russas, já que as tropas russas estão na outra margem do Dnieper de Kherson, a aproximadamente 25 quilômetros de Zaporozhye e 20 quilômetros de Kharkov”, diz o estudo.
A Rússia detém a iniciativa militar no front e avança lenta e gradualmente no território ucraniano desde o fim de 2023. Assim, o impasse nas negociações é uma forma da Rússia ir conquistando melhores posições para o momento em que as negociações de paz abordarem a questão territorial.
De acordo com o relatório do ISW, a Rússia também intensificou o uso de veículos blindados ao longo de toda a linha de frente, o que pode indicar o início de uma campanha de longo prazo para formar o chamado “cinturão de segurança” na região de Donetsk.
Em entrevista ao jornal francês Le Point, divulgada nesta quarta-feira (23), o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, reiterou que a guerra terminará se a Ucrânia retirar as tropas das quatro regiões anexadas pela Rússia em 2022 (Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye) e reforçou que Moscou quer “alcançar seus objetivos” na guerra “por meios pacíficos ou militares”. Desta forma, antes de quaisquer iniciativas políticas, tudo indica que são os desdobramentos no campo de batalha que irão definir os processos de negociação.
Fonte ==> Brasil de Fato