Suno e Udio são duas empresas que geram música por Inteligência Artificial (IA) generativa acusadas de “treinar” seu modelo sem pagar um centavo aos criadores das canções. Nos Estados Unidos, ambas estão sendo processadas por um grupo de gravadoras que questiona a legalidade do uso de suas obras. “É pior do que plágio!”, diz Gustavo Deppe, advogado especializado em direitos autorais na área musical.
No Relatório Global de Música 2025, divulgado em março, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica classificou a prática como uma “ameaça muito real” ao setor. Para Paulo Rosa, presidente da Pro-Música, que representa as gravadoras majors (Universal, Warner e Sony) no Brasil, “não é nada agradável que um sistema se utilize desse conteúdo sem qualquer autorização dos titulares”.
Tendo em vista que, a esta altura da IA, os sistemas já absorveram as músicas “sem autorização de ninguém”, o mais importante, nas palavras de Rosa, é estabelecer, com urgência, um modelo de negócio ou de licenças para seu uso legal.
As gravadoras também estão em pé de guerra com os agregadores digitais. Essas empresas funcionam como intermediários entre quem produz as músicas e quem as executa, ou seja, plataformas como Spotify, Deezer, Apple Music, YouTube Music etc. Algumas delas negociam músicas criadas a partir de chatbots de composição cujo treinamento tomou por base canções feitas por artistas de carne e osso.
“Tem muita gente se aproveitando das ferramentas de Inteligência Artificial para fazer músicas a partir de composições de artistas conhecidos”, explica Deppe. “Essas músicas são colocadas nas plataformas por meio desses agregadores, que são remunerados por isso.”
O Projeto de Lei 2.238/23, que regulamenta a Inteligência Artificial no País, aprovado no Senado em dezembro e agora em trâmite na Câmara dos Deputados, proíbe o uso de conteúdos protegidos – tanto na música quanto em outras áreas – para o treinamento de sistemas de IA.
O texto prevê que, caso a obra seja utilizada no desenvolvimento dos sistemas, seu titular terá direito a remuneração. Mas tudo dependerá do Congresso – e dos resultados do cabo de guerra entre os lobistas que ali atuam.
Outro problema que tem incomodado as majors e foi apontado no relatório relativo ao Brasil é o impulsionamento ilegal de músicas por meio de serviços de streaming. Segundo a Pro-Música, mais de 80 sites de manipulação artificial de likes, curtidas e popularidade de perfis foram bloqueados nos últimos dois anos. “O setor fonográfico luta desesperadamente para que não exista esse tipo de fraude”, afirma Rosa.
“Tem muita gente se aproveitando das ferramentas de IA para fazer músicas a partir de composições de artistas conhecidos”, diz Gustavo Deppe
A prática é uma espécie de jabá moderno. Trata-se de uma prática ilegal cujo objetivo é dar maior visibilidade a um ou outro artista na internet.
“Antes, representantes comerciais das gravadoras ofereciam às rádios e televisões prêmios para fazer sorteio, dinheiro vivo e facilidades para tocar seu artista – era o chamado jabá”, diz Tuninho Villas, presidente do Sindicato Nacional do Compositores de Música. “Hoje, com a web sendo a principal plataforma de divulgação da música, qualquer um pode manipular os dados de audiência.”
O “jabá digital” é, inclusive, objeto do Projeto de Lei 4.968/24, que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, e altera a Lei dos Direitos Autorais, que é de 1998 e passa ao largo de muitas das questões que a tecnologia tornou prementes.
Um dos artigos do PL propõe, por exemplo, que os provedores de internet combatam o uso de robôs que insuflem artificialmente rankings e listas de reprodução no streaming. Outro artigo busca instituir uma remuneração considerada mais justa a conteúdos protegidos por direitos autorais.
Hoje, mesmo que consiga – sem o uso de artifícios antiéticos – sobressair no competitivo mercado fonográfico, o artista enfrenta, invariavelmente, outro desafio: a baixíssima remuneração pela reprodução de suas músicas nas plataformas de streaming. Embora esse não seja um tema que mobilize as grandes gravadoras, ele é central para os intérpretes e compositores.
As plataformas de streaming destinam, em média, 12% das receitas geradas por uma canção para pagamento de direitos autorais. O valor pode ser maior, dependendo do acordo entre artista ou gravadora e o agregador – que também recebe um porcentual da receita.
O valor unitário de um stream (a reprodução de uma música) é considerado, pelos criadores, um acinte: ele fica entre 0,003 e 0,009 dólar. Ainda que seja difícil fazer comparações exatas, uma vez que as tabelas do rádio são extremamente variáveis, é possível dizer que, numa emissora, a execução de uma música nunca vale menos de 1 dólar.
De acordo com Deppe, essa questão está muito ligada ao fato de não ter havido uma negociação adequada entre os titulares dos direitos sobre as músicas e as plataformas quando elas chegaram ao País, no início dos anos 2010.
Em 2024, segundo o relatório da Pro-Música, o faturamento gerado pelas assinaturas dos serviços de streaming musicais foi de cerca de 2 bilhões de reais. O mesmo estudo aponta que 87,6% da receita do mercado fonográfico brasileiro vem das plataformas.
Parece claro que a única maneira de equilibrar as novas relações impostas pela tecnologia ao setor é atualizar as legislações, algo que, como todos sabemos, nunca será simples nem rápido. •
Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Criação embaralhada’
Fonte ==> Casa Branca