A decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), de proibir a aplicação no Brasil de decisões judiciais e leis estrangeiras que não estejam validadas por acordos internacionais ou referendadas pela Justiça brasileira colocou os bancos brasileiros diante de uma “escolha de Sofia”: atender à determinação da Corte significa descumprir as sanções aplicadas ao ministro Alexandre de Moraes por meio da Lei Magnitsky. E isso põe em risco a sobrevivência dessas instituições.
Antes mesmo da decisão de Dino, os bancos já se esforçavam para atender ao alcance da lei. A percepção inicial das instituições brasileiras era de que Moraes, sancionado pelos Estados Unidos em 30 de julho, estaria sujeito basicamente a três consequências principais: proibição de viagem aos EUA, congelamento de bens em território americano e impossibilidade de realizar transações econômicas com empresas americanas.
Isso indicaria que somente operações em dólar estariam imediatamente vetadas, como o uso de cartões de crédito de bandeiras americanas ou de contas e investimentos em bancos que atuem nos Estados Unidos.
Com a nova determinação de Dino, que gerou perplexidade e apreensão, o impasse ganhou novas proporções. A expectativa é de risco iminente de ampliação das sanções do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros do Tesouro (Office of Foreign Assets Control – Ofac), responsável por administrar o regime, aliado ao aumento da fiscalização sobre cumprimento das determinações. Também já é esperada a extensão das medidas à esposa e familiares de Moraes. Os bancos, portanto, vão precisar se posicionar claramente em relação às duas determinações.
Isso significa correr risco. Existe uma enorme interdependência entre os sistemas financeiros brasileiro e norte-americano. As instituições nacionais atuam e têm subsidiárias no exterior. Quando estabelecem relações para serviços — como transações internacionais, financiamentos ou pagamentos em dólar —, elas precisam assinar contratos e se comprometer a seguir as diretrizes de órgãos internacionais, baseadas especialmente na legislação americana. Caso descumpram, podem sofrer multas ou rompimento de contratos.
“Não é uma questão de não atender à Lei Magnitsky, e sim de enfrentar as mazelas decorrentes daquela escolha”, afirma a constitucionalista Vera Chemim. “Na hipótese de que os bancos decidam atender à decisão de Flávio Dino, sob pena de serem enquadrados em crime contra a soberania nacional, eles fecharão as suas portas, uma vez que a maioria de suas transações envolve o sistema americano.”
O advogado constitucionalista André Marsiglia acredita que a decisão das instituições deverá ser pragmática. “É uma situação que nem é jurídica, mas lógica, porque, ao não cumprir a Magnitsky, existe a possibilidade real de que os bancos tenham cortada a sua relação com o sistema financeiro norte-americano. Eles são totalmente dependentes dessa relação”, diz. “Eu imagino que eles vão optar por cumprir a legislação americana e, com isso, inclusive, mais uma vez levar a Corte a um descrédito — um descrédito que a própria Corte propiciou.”
Para Gabriel Santana, fundador do Grupo GSV, muitos bancos deverão recorrer ao Judiciário e demonstrar a obrigatoriedade de cumprimento da lei americana. “Farão isso sob pena de inviabilizar a manutenção em funcionamento de cada entidade”, avalia.
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As atenções estão voltadas principalmente ao Banco do Brasil, que administra parte da folha de pagamento do STF. Banco público de capital aberto, o BB tem operações nos Estados Unidos e ações em bolsa. Caso não cumpra uma determinação do Ofac, terá de fechar sua operação nos EUA.
Também há risco de multas. A experiência mostra que o Departamento do Tesouro e o Departamento de Justiça dos EUA não hesitam em aplicar punições pesadas a instituições financeiras que tentam burlar sanções. Embora sanções aplicadas pelo Ofac com base na Lei Magnitsky não tenham sido diretamente a bancos, atingiram uma corretora e a indivíduos que violaram sanções.
Nos Estados Unidos, a Interactive Brokers LLC foi multada em US$ 11,83 milhões, em julho de 2025, por violações de diferentes programas de sanções — entre elas, negociações de ativos de entidades ligadas ao Regime Global Magnitsky. Em dezembro de 2024, a Ofac aplicou multa de US$ 45,1 mil a um indivíduo por seis transações em favor de pessoa bloqueada.
A decisão de Dino não cita diretamente a Magnitsky. Ela foi proferida em uma ação que questionava no STF um processo movido na Inglaterra por vítimas do rompimento da barragem de Mariana (MG), em 2015, contra as mineradoras Vale e BHP. O caso começou a partir de ação do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que alegou ser inconstitucional a contratação de escritórios estrangeiros por municípios brasileiros para atuar no exterior. A tese foi aceita por Dino e confirmada pelo plenário do Supremo em 2023. Agora, Dino reiterou que decisões e leis estrangeiras não podem ser aplicadas no Brasil sem homologação.
Em nota enviada à reportagem, o Banco do Brasil afirmou que atua em conformidade com a legislação brasileira, normas internacionais e regras dos países onde está presente. A instituição reforçou ainda seu compromisso com governança, integridade, segurança financeira e soluções responsáveis e sustentáveis. Confira a nota na íntegra:
O Banco do Brasil atua em plena conformidade à legislação brasileira, às normas dos mais de 20 países onde está presente e aos padrões internacionais que regem o sistema financeiro. Com mais de 80 anos de atuação no exterior, a instituição acumula sólida experiência em relações internacionais e está preparada para lidar com temas complexos e sensíveis que envolvem regulamentações globais. O Banco sempre acompanha esses assuntos com atenção e conta com assessoramento jurídico especializado para garantir atuação alinhada às melhores práticas de governança, integridade e segurança financeira. O BB reforça o compromisso em oferecer soluções responsáveis, seguras e sustentáveis para todos os seus públicos de relacionamento.
Dino tirou “coelho da cartola”
Na avaliação de Marsiglia, Dino se aproveitou de uma ação que não tinha “nada a ver com a história”, numa reação combinada entre membros do STF. “Ele [Dino] tirou um coelho da cartola para tratar desse assunto”, afirma. “A minha leitura é de que muito provavelmente o Zanin não tinha, ou não teve, coragem, vamos dizer assim, para tomar uma decisão [sobre as ações em curso].”
A estratégia, segundo o constitucionalista, pode ter sido de evitar um enfrentamento mais direto com os EUA, mas o resultado é duvidoso. “Fico em dúvida realmente se os ministros são ou têm se comportado de forma ingênua ou se eles têm alguma estratégia por trás disso”, diz.
“Tenho usado a seguinte imagem: quando você encontra um urso na selva e você sabe que não pode correr dele nem o enfrentar, você grita para ver se ele desvia, se assusta, se cansa de você e vai fazer outra coisa.”
Os Estados Unidos, porém, não parecem desviar o foco de Moraes. Em publicação no X, nesta segunda-feira (18), o Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado da gestão Donald Trump mencionou o caso do ministro e afirmou que tribunais estrangeiros não podem invalidar sanções impostas pelos EUA.
“Alexandre de Moraes é tóxico para todas as empresas e indivíduos legítimos que buscam acesso aos EUA e seus mercados. Nenhum tribunal estrangeiro pode invalidar as sanções dos Estados Unidos — ou poupar alguém das consequências graves de violá-las”, disse.
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Soberania institucional e dependência financeira
Em sua decisão, Dino justificou a necessidade de reagir a ameaças à soberania nacional. Segundo ele, o cenário se agravou “sobretudo com o fortalecimento de ondas de imposição de força de algumas nações sobre outras”. “Com isso, na prática, têm sido agredidos postulados essenciais do Direito Internacional. Instituições do multilateralismo são absolutamente ignoradas”, afirmou. “Nesse contexto, o Brasil tem sido alvo de diversas sanções e ameaças, que visam impor pensamentos a serem apenas ratificados pelos órgãos que exercem a soberania nacional.”
Para Santana, o caso expõe a fragilidade de economias interligadas, “em que leis de um país têm efeitos diretos sobre outro”. “O desafio agora é equilibrar a defesa da autonomia jurídica com a necessidade prática de manter o Brasil integrado ao sistema financeiro internacional”, diz.
A soberania do sistema brasileiro também é destacada pelo advogado Massami Uyeda Júnior, sócio no escritório Arap Nishi Uyeda. “A decisão do ministro põe no papel exatamente o seguinte: ‘meu país é meu país, seu país é seu país’. Se quiser aplicar sanções ou decisões judiciais, tem que seguir um rito. Decisões estrangeiras, arbitrais ou judiciais, precisam ser referendadas pela ordem jurídica nacional. Mas isso já existe, ele não inventou a roda.”
Porém, ele alerta para as retaliações que devem se seguir. “O problema dos bancos é que eles vão ter milhões, bilhões de dinheiro bloqueado nos Estados Unidos, um problema sério”, diz. “Eles estão expostos a uma retaliação preliminar, que pode ser contestada. Mas até explicar depois o que é uma coisa ou outra, vai demorar mesmo. E aí [eles] vão perder muito dinheiro. E o dinheiro fala mais alto.”
Bancos perdem R$ 41 bilhões em valor de mercado com decisão de Dino
As ações de bancos brasileiros caíram nesta terça-feira (19) após a decisão de Dino sobre as leis estrangeiras. As instituições financeiras perderam R$ 41,9 bilhões em valor de mercado.
O Ibovespa, principal índice da Bolsa de Valores brasileira (B3), fechou em queda de 2,1%, aos 134.432 pontos. O dólar comercial terminou o pregão em alta de 1,19%, cotado a R$ 5,499 na venda. O Banco do Brasil – responsável por pagar os ministros do STF – sofreu o maior recuo do setor, despencando 6,02%.
Em seguida, também foram afetados o Santander (-4,87%), o BTG (-3,48%), o Bradesco (-3,42%) e o Itaú (-3,04%). Segundo a consultoria Elos Ayta, em valor de mercado, os bancos perderam:
- Itaú: R$ 14,7 bilhões;
- BTG Pactual: R$ 11,4 bilhões;
- Banco do Brasil: R$ 7,2 bilhões;
- Bradesco: R$ 5,4 bilhões;
- Santander: R$ 3,2 bilhões.
Fonte ==> Gazeta