Democracia relativizada – 12/05/2025 – Opinião

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Foram duas décadas de regime autoritário até a redemocratização, que estabeleceu um novo arranjo com o pacto constitucional de 1988. Mas implantar uma democracia não garante sua estabilidade nem durabilidade.

A multiplicidade de vozes que a democracia abriga permite, inclusive, ataques à ela mesma. Subverter a Constituição por dentro, como registra Steven Levitsky, e continuar chamando o novo regime de democracia é a grande estratégia de líderes da extrema direita como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei. Não há defesa da implementação de uma ditadura no discurso deles. Ao contrário: defendem a liberdade e se voltam contra a censura.

Caso Bolsonaro tivesse assinado decreto e permanecido no poder, o golpe teria sido concretizado por dentro da Constituição e a principal estratégia seria negar a ruptura democrática e afirmar que a verdadeira democracia teria começado. A história se assemelha. Em 1964, o golpe foi efetivado com ameaça militar em nome da democracia contra o comunismo e muitos defensores desse período chamam a ditadura de “revolução democrática”.

Pesquisas quantitativas demonstram alto apoio à democracia no Brasil. Esses estudos são necessários e, quando complementados com metodologias que captam comportamentos e motivações, podem responder à pergunta: que democracia desejada é essa? Pesquisa qualitativa com mais de 17 horas de entrevistas com bolsonaristas, divididos por diferentes faixas etárias e de renda, buscou compreender essa questão.

A pesquisa revela que, para eles, a democracia é sempre a melhor forma de regime político e que uma ditadura não é desejável de nenhuma forma. Mas as visões de mundo dos entrevistados sobre as instituições levantam um paradoxo: a mesma maioria que é a favor da democracia em qualquer ocasião também é a favor do fechamento do Supremo Tribunal Federal e de uma tutela militar que restaure Poderes corrompidos. Para o bolsonarismo, não vivemos uma democracia e temos uma ditadura comandada pela alta corte brasileira e pelos progressistas.

A ascensão da extrema direita no Brasil se desenvolve com o apoio de uma base radical que se intitula um exército e com outros milhões de eleitores moderados indignados com o sistema político, consolidando essa força como uma opção viável para o eleitorado com discursos antissistema sedutores, que estão longe de um esgotamento —e que, para essas pessoas, nada tem a ver com degradação da democracia, mas sim com a esperança de uma mudança real em suas vidas.

Os políticos de extrema direita direcionam o discurso para a esfera moral, pois nela conseguem extrair o sentimento das pessoas de que existe uma luta do bem contra o mal, onde o mal é representado pelos inimigos e, ao lado do bem, sempre estão o cidadão virtuoso e a verdade orientada pelas lideranças.

A citação de João 8:32 (“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”) por Bolsonaro cumpre o papel de interlocução com os cristãos, mas também é a base de seu fundamentalismo político que anula a possibilidade de diálogo e sequestra a verdade —como se apenas ele tivesse a validação da verdade.

Com a reivindicação da verdade na base de seus projetos, essas lideranças atuam em uma operação hegemônica que visa transformar valores e visões estabelecidas. Nesse contexto, o conflito antissistema versus sistema se desenvolve entre visões distintas e irreconciliáveis.

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a democracia é relativa em comentário sobre a Venezuela, a brecha política foi aproveitada pelo bolsonarismo. Relativizar a democracia enfraquece ainda mais o pacto constitucional de 1988 e abre espaços para projetos de regressão democrática.

Fato é que, 61 anos após o golpe, autoritarismos tentam se disfarçar de democracia entre as sombras e fendas de um passado militar na política que nos persegue no presente.

TENDÊNCIAS / DEBATES

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Fonte ==> Folha SP

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