Descobrir que sou branca não é leve, mas é bom sinal – 19/05/2025 – Vera Iaconelli

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Assisti à defesa de tese de um jovem psicanalista na USP e, no trabalho dele, marcadores como raça, classe social e gênero apareciam consistentemente. Ao sair dali, eu e uma colega nos demos conta de que fazia pouco mais de dez anos que havíamos defendido nossos próprios doutorados naquela mesma instituição e, em ambos os casos, essas questões simplesmente não estavam em pauta.

Tampouco era esperado que estivessem. Quando cobradas em uma arguição, podiam soar como militância descabida ou preciosismo teórico. À exceção dos casos em que a pesquisa tratava diretamente de marcadores interseccionais, esses temas passavam ao largo. Hoje, eles são o pano de fundo obrigatório de qualquer discussão que se pretenda relevante.

O que mudou de lá para cá? A entrada de jovens negros (categoria que inclui pretos e pardos) e indígenas nas universidades. Eles trouxeram pautas fundamentais para o debate, como o epistemicídio de autores negros, denunciado por Sueli Carneiro. Eles escancararam o pacto da branquitude, descrito por Cida Bento, que funciona como o nosso nariz: tão próximo que se torna difícil vê-lo, embora esteja na nossa cara o tempo todo. Isso justifica, por si só, a existência das cotas raciais estudantis.

Somos nós, os brancos, que temos a obrigação de romper os elos desse pacto de violências e injustiças. Não se trata de pureza de coração ou superioridade moral, pois ele nos faz perder no atacado o que ganhamos no varejo. A própria vida em sociedade se torna aterrorizada pela violência e diminuída pela culpa.

Mas é preciso distinguir, grosso modo, brancos convictos de que são melhores e merecem mais daqueles que querem mudar essa mentalidade. O problema é que os bem-intencionados continuam na fila do inferno, já que intenção nunca foi suficiente.

O pacto da branquitude se baseia na ideia de que somos o gabarito e os outros, bem, os outros são os outros. Isso serviu de justificativa para a escravidão, por exemplo, embora seja absolutamente atual. Como me afirmou, certa vez, uma jovem branca de classe média alta: a babá da filha dela não sofria com a ausência dos filhos que havia deixado no Nordeste porque “essa gente está acostumada, né?”. Enquanto isso, ela mesma se dizia arrasada cada vez que levava a filha à escola no bairro. “Essa gente” são os outros. Nós somos os brancos bem-intencionados.

Reconhecer que somos igualmente humanos vem junto com admitir a quantidade de violências que perpetuamos ao nosso redor, simplesmente pelo nosso fenótipo. O reconhecimento não ocorre sem desconforto. É nossa autoimagem que está em jogo, e a ferida narcísica é garantida. Talvez o principal indício de que a quebra do pacto está em curso seja o mal-estar que ele engendra por encararmos nossa pequenez.

Com frequência, o branco se sente injustiçado por negros que cobram atitudes e fazem críticas, justas ou não. Acima de tudo, trata-se do incômodo de se ver, pela primeira vez, confrontado na própria cor, na própria posição social, por alguém que, supostamente, deveria ser agradecido pelas boas intenções do branco “antirracista”.

Há dez anos, eu mal sabia que era branca. Descobrir que sou não tem sido nada leve. Considero isso um bom sinal.



Fonte ==> Folha SP

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