Diário de poentes no pampa – 09/05/2025 – Mario Sergio Conti

Ao centro da imagem está içada a bandeira do Uruguai e, abaixo dela, uma forma arquitetônica curva com cobertura branca ilustra o aeroporto internacional de Montevidéu. Abaixo, uma grande área verde sugere um gramado, ali está um homem com um celular na mão e uma mala de rodinhas na outra. O olhar do homem vai em direção à outra ponta da ilustração de onde surge um carro preto.

Quinta-feira, 1º de maio. A paisagem faz jus à fama de que o Uruguai é pequeno: árvores tísicas, tetos baixos, prédios tímidos. O aeroporto de Montevidéu não se equipara a Heathrow, Roissy, Guarulhos; ainda bem, porque os três são ampliações informes de gosmas caóticas. O de Carrasco não. Sua suave brancura se alça sobre o pampa infinito, flutua.

Sexta-feira. O pequenino Uruguai abriga em Manantiales um dos maiores museus do mundo, o Maca, Museu de Arte Contemporânea Atchugarry. A maxicoleção parece mini graças à meia dúzia de edifícios curvilíneos, em madeira, fincados em aclives harmoniosos.

Pablo Atchugarry, que o concebeu, está com 70 anos e faz esculturas construtivistas com mármore de Carrara. O interesse delas —caso interesse tenham— advém do desvirtuamento da nobre rocha toscana, desde sempre associada à estatuária de Michelangelo. Davi, a Pietà, Moisés, adeus!

Delírio, meu, delírio: supor que o arquiteto do esbelto Maca, o uruguaio-canadense Carlo Ott, é o mesmo da Ópera da Bastilha, um equívoco hostil em mármore, vidro e aço encomendado por Mitterand para aborrecer o bicentenário da Revolução. Pois Ott venceu um concurso com 1.700 arquitetos e pôs de pé o troço que a França inteira odeia com fervor.

Sábado. Também um equívoco, mas do avesso, é Casapueblo, obra do indizível mau gosto do faz-tudo Carlos Páez Vilaró em Punta Ballena. Em 1958, ele começou a casa de veraneio que, com os anos, propagou-se e degenerou num dédalo de casebres xifópagos, um cortiço com elefantíase.

À tarde, incautos se apinham no pardieiro e —como no Posto 9, em Ipanema— aplaudem o poente no rio da Prata, enquanto alto-falantes irradiam a voz piegas do finado Vilaró, a declamar trovas da sua lavra louvando o arrebol. Mas uma canção redime a cafonice de cortar os pulsos:

“Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada”

Lembra dos versinhos de Vinicius de Moraes? Pois então: reza a mitologia guasca que o poeta, quando cônsul nos pampas, ficou chapa de Vilaró; e teria tido em Casapueblo a boa ideia de compor a canção sobre a casa feita com muito esmero na rua dos Bobos, número zero. Quem diria?

Tem mais. Sabe aquele avião que caiu na cordilheira dos Andes com um time de rugby uruguaio, em 1972? Aquele em que os sobreviventes canibalizaram os que morreram? Pois ia no funesto voo um filho de Vilaró, Carlito. O pintor não se conformou quando o governo chileno desistiu de buscá-lo e mudou-se para Santiago a fim de pressioná-lo. Tanto encheu os chilenos que o filho se salvou. Há uma lição do episódio; não atino qual.

Domingo. Também não atino um lugar na América Latina que lembre Punta del Este. Não se vê as hordas de maltrapilhos que, como exigem os costumes defendidos a ferro e fogo pelas elites continentais, definham nas ruas. Pode ser apenas pátina, mas o Uruguai parece decente.

Mas eis que o diário uruguaio El País noticia que Alejandra Koch saiu da Administración Nacional de Puertos, uma estatal poderosa, depois de três dias como vice-presidenta. Motivo: bastaram-lhe 72 horas para nomear o marido e o chofer para cargos de direção na ANP. Sinto-me em casa.

Jantar no Fasano em Punta. A dupla Gero-Isay acertou na mosca. A arquitetura do hotel, de madeira íntima e vãos livres libérrimos, projeta-se para fora, para a planície, para as pedras de aspecto lunar, para o pampa que se abre para o céu com uma Lua crescente rubra. De fato, é do jamais visto.

Segunda-feira. A Cinemateca, em Montevidéu, é chocante, fica em Zurique. Prédio asseado, tela imensa, banheiro que não fede. A projeção, as poltronas e o som nunca foram vistos em décadas de frequência semanal de cinemas nacionais. Não dá para acreditar: ao contrário do que é obrigatório em São Paulo, o pão de queijo não é feito com borracha.

Como se não bastasse, “Misericórdia” é inacreditável. Faltou pouco, bem pouco, para atingir o ponto de combustão de “O Problema com Harry”, de Hitchcock, a explosiva argamassa de mistério e humor. Dirigido pelo francês Alain Guiraudie, o filme é uma defesa hilária de perversões de todo tipo; exibe até um padre de pênis ereto.

Terça-feira. Entre Montevidéu e Colonia del Sacramento, impõe-se a paisagem inarbórea, de monotonia essencial. No Texas, Borges lembrou-se do pampa:

“Aquí también. Aquí, como en el otro

confín del continente, el infinito

campo en que muere solitario el grito;

aquí también el indio, el lazo, el potro”

O pampa: “esa desconocida y ansiosa y breve cosa que es la vida”.



Fonte ==> Folha SP

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