Donald Trump é um bárbaro. Seu assalto político e financeiro à Universidade Harvard —suspensão de contratos ou subsídios federais, perseguição fiscal, proibição de matrículas de alunos estrangeiros— é prova da sua barbaridade.
E a ambição de determinar os conteúdos que a universidade pode ou deve ensinar é uma imitação grotesca das práticas pedagógicas dos estados totalitários. Se você marcha contra essa barbaridade, tem o meu apoio. Mas eu confesso que teria gostado de ter visto essa indignação quando foi Harvard, por ação ou omissão, que permitiu abusos intoleráveis no passado.
Onde estava sua indignação quando a bióloga Carole Hooven foi ostracizada e escorraçada de Harvard em 2021 só por defender a primazia biológica da diferença entre os sexos? Aliás, onde estava essa indignação quando Ronald Sullivan foi obrigado a demitir-se das suas funções de reitor na universidade só porque aceitou ser advogado de Harvey Weinstein?
Ah, sei: num Estado democrático de Direito, há certas classes de indivíduos que não merecem representação jurídica? Parabéns e bem-vindo a Moscou! Esses e outros exemplos são relembrados por Steven Pinker, ilustre professor da casa, em artigo para o New York Times. Pinker é ave rara: condena a inquisição de Trump e condena as inquisições internas anteriores a Trump. E você? Só despertou agora?
Mas a atitude de Trump não é apenas bárbara. Ela reproduz, em escala maior, a ignorância que a “nova direita” cultiva quando fala da “hegemonia cultural” da esquerda. Se os progressistas dominam o espaço cultural, então o caminho é reconquistar esse território com a força coerciva do Estado, dizem os pequenos Gramscis enquanto palitam os dentes.
Uma vez mais, isso é possível se estivermos falando de regimes totalitários. Mas, quando existe um grau razoável de liberdade, o verdadeiro poder cultural não depende do poder político.
Tempos atrás, o jornalista Janan Ganesh ensaiou duas explicações possíveis, que importa revisitar. A primeira, empiricamente confirmável, defende que a direita liberal tende a preferir as áreas econômicas ou jurídicas em detrimento das literárias ou artísticas.
Isso significa, para usar o jargão sociológico, que há mais candidatos progressistas para ocuparem as posições-chave no aparelho da consagração simbólica do que liberais. Inversamente, e pelas mesmas razões, há mais liberais no setor financeiro do que progressistas. A segunda explicação aponta para o espírito coletivista e gregário da esquerda: ela se organiza melhor e esse voluntarismo dá seus frutos em termos de influência cultural.
Tendo a concordar com a segunda tese, embora não nos termos em que Ganesh a apresenta. Se a direita, como escreve o autor, está condenada a perder as guerras culturais, isso significa que a alma liberal não foi feita para as trincheiras.
A esquerda vence a guerra porque acredita nela, vive para ela, investe nela. Mas como pedir a individualistas convictos que se tornem ativistas culturais? Um espírito liberal não vê a cultura como uma arma; não pretende fazer engenharia social através dela; a própria noção de que existe uma guerra para matérias do espírito é de uma vulgaridade intolerável.
Nesse sentido, o principal manual estético das almas liberais não está em manifestos, doutrinas —ou no pequeno “Organon” que Bertolt Brecht elaborou para o seu teatro engajado. Está nas cartas de Rainer Maria Rilke ao jovem poeta, sobretudo nas passagens em que o aconselha a retirar-se do ruído do mundo para “entrar em si mesmo”.
A direita liberal perde as “guerras culturais” porque “guerra” e “cultura” são dois conceitos antagônicos para ela. A ambição trumpista de produzir uma “hegemonia cultural” de direita não passa de uma imitação jacobina de sentido inverso. Que vai durar, na melhor das hipóteses, enquanto o reinado do Donald Trump durar.
No seu rastro, e como sempre acontece com o jacobinismo, ficará apenas injustiça e destruição —alunos perdidos, carreiras amputadas, estagnação científica. O ressentimento, esse, terá sido vingado.
Fonte ==> Folha SP