“Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo.” A máxima, erroneamente atribuída a Voltaire, foi cunhada por Evelyn Beatrice Hall e traduz a essência iluminista da liberdade de expressão, um dos pilares do Estado democrático de Direito.
No Brasil, a Constituição de 1988 é clara ao assegurar a livre manifestação intelectual, artística, científica e de comunicação —e ao proibir expressamente censura de natureza política, ideológica ou artística.
Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130, que declarou inconstitucional a antiga Lei de Imprensa, vigora no país o princípio do “in dubio pro libertate”. Ou seja: a liberdade de expressão ocupa posição preferencial no sistema de direitos fundamentais.
É preocupante, portanto, a condenação do humorista Leo Lins a oito anos de prisão por suposto “racismo recreativo” (cabe recurso). A sentença criminal desconsidera o “animus jocandi” (intenção de fazer humor), afastando-o como conceito “superado”, e conclui que as falas em contexto de comédia, ainda que controversas ou de mau gosto, caracterizam crime, justamente por se darem em ambiente de “descontração e diversão”.
No entanto, a própria lei 14.532/2023, que tipifica o racismo recreativo, exige dolo específico para a configuração do crime. O “animus discriminandi” (intenção deliberada de ofender, excluir ou rebaixar a dignidade de minorias) é elemento essencial desse tipo penal. Sem ele, não há crime. Tal entendimento foi consagrado no habeas corpus 82.424, em que o STF reconheceu o crime de racismo apenas quando a conduta revela clara intenção de inferiorização racial.
No caso de Lins está ausente o dolo específico, salvo prova muito robusta em sentido contrário, da qual não se tem notícia. Deveria haver um discurso de ódio específico, direcionado a cumprir o objetivo de incitar a violência, opressão, marginalização, exclusão ou até eliminação de determinado grupo étnico.
O humor pode ser considerado indecoroso ou de mau gosto, mas isso não significa a vontade dolosa de humilhar ou submeter uma comunidade ao opróbrio a ponto de implicar na prática de crime de ódio em show humorístico, no qual o público-alvo sabe prévia e indubitavelmente estar sob atmosfera de pilhéria, sem qualquer dolo específico. A tentativa de criminalizar a piada, por si só, fere o núcleo duro da liberdade de expressão.
A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, foi enfática ao afirmar, no recurso especial 736.015/RJ, que o Judiciário não pode definir o que é humor aceitável, pois “não cabe aos tribunais dizer se o humor praticado é popular ou inteligente”. E mais: “A crítica artística não se destina ao exercício da atividade jurisdicional”. O mesmo raciocínio norteou o julgamento da reclamação que tratou do especial de Natal do Porta dos Fundos, em que o STF afastou a configuração de intolerância religiosa por ausência de dolo específico, como destacou o ministro Gilmar Mendes.
Em outro caso, a ADI 4.451, o Supremo reiterou que a liberdade de expressão protege manifestações satíricas, provocativas e até mesmo ofensivas, desde que não incitem a violência. Isso porque o espaço público democrático pressupõe a pluralidade de opiniões —inclusive as impopulares.
Censurar o humor é deslegitimar a inteligência crítica da sociedade. É substituir a autorregulação da opinião pública por uma tutela paternalista do Estado, como se o povo brasileiro fosse incapaz de distinguir o preconceito do sarcasmo.
O combate ao racismo é inegociável e deve ser firme. Mas não é pela via da repressão autoritária e da criminalização do discurso que o preconceito será vencido. A democracia exige sabedoria e humanismo, inclusive para tolerar o que nos desagrada. A censura não liberta —ela silencia.
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Fonte ==> Folha SP