Só no fim, depois de uma hora e 40 minutos de projeção, surge a sequência que ajuda a entender “Apocalipse nos Trópicos“, em cartaz nos cinemas e a partir do dia 14 no catálogo da Netflix. Ela lista quem fez o quê no documentário que se passa entre dois janeiros, o de 2019, mês da posse de Bolsonaro, e o de 2023, quando tentou dar um golpe.
O primeiro nome é o de Petra Costa, diretora e autora do roteiro. Aí vêm, pela ordem, uma “coescritora”; três “corroteiristas”; quatro que fizeram “colaboração principal de roteiro”; quatro responsáveis por “colaboração de roteiro”; e quatro prestadores de “consultoria de roteiro”.
Feitas as contas, 17 pessoas botaram a mão no roteiro —fora sete “conselheiros de conteúdo”. É muita gente. A fartura levou “Apocalipse nos Trópicos” a ter “muitos chapéus e poucas cabeças”, profecia de um apocalíptico de verdade, Antônio Conselheiro, o anacoreta de Canudos.
Ou seja, falta ao filme autoria, o ponto de vista de quem busca uma revelação —e “apocalipse” significa tanto revelação como fim do mundo. Falta nele Petra Costa, a cineasta lírica de “Elena“, sobre o suicídio de sua irmã, e a diretora política de “Democracia em Vertigem“, relato ferino da demolição de Dilma, prisão de Lula e unção de Bolsonaro.
Ela entrevistou o atual e o ex-presidente, mas seu filme pouco revela deles. A cena mais impactante com Bolsonaro foi na pandemia, quando berrou: “Todo mundo vai morrer. Se morrer no campo, urubu vai comer. Todo mundo vai feder da mesma maneira”. É ou não um estadista?
Lula tem uma única cena forte: a trepidante saída da cadeia, digna de “Terra em Transe“. O filme deixa de fora seu discurso pouco depois, quando anunciou solenemente que venceria Bolsonaro no voto.
Com os presidentes em segundo plano, quem ocupa espaço é o pastor Silas Malafaia. Bufão de estridência caricata, ele é naturalmente espaçoso: ostenta seu avião, a BMW, a mansão de mobiliário novo-rico, os jagunços que o protegem, o café da manhã de propaganda de margarina.
Como é o personagem que mais aparece em “Apocalipse nos Trópicos”, o filme é duplamente prejudicado. Primeiro, porque ele tem voz esganiçada, fala muitos decibéis acima do tolerável, se deleita em berrar bravatas, grosserias e insultos —Lula é um “cachaceiro”, xinga.
E desequilibra “Apocalipse” porque é uma figura menor. Ninguém lembra nada do que disse e diz. O pastor é pequeno por ser oportunista. Apoiou Lula, depois Serra, em seguida Aécio, acabou lustrando o coturno de Bolsonaro, que também é oportunista, mas noutro sentido. No baixo clero ou no Planalto, rosnou, latiu e mordeu em nome da extrema direita. Como os Bourbons, não aprendeu nem esqueceu nada desde a caserna.
É na religião que Bolsonaro é oportunista: católico, rebatizou-se evangélico no rio Jordão com o fito único de angariar votos no rebanho pentecostal.
Um dos pastores que apascentaram-lhe as ovelhas foi Malafaia —que por sua vez, como se vê no filme, é vaidoso, gaba-se de sua proximidade com os mandachuvas, de se esgoelar em palanques e de entrar em palácios sem mostrar documento. O casamento do presidente e o pastor é de conveniência: precisam um do outro.
Entre a religião e a política, “Apocalipse nos Trópicos” fica com o misticismo já a partir do título. Petra Costa relata de viva voz que, oriunda de uma família laica, a religião sempre lhe foi distante. Até o dia que topou na Câmara com Cabo Daciolo, um híbrido de bombeiro, pastor e deputado que lhe deu uma Bíblia de presente.
Ela se encantou com o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse. Veio a ficar fascinada com um obscuro ramo da literatura esotérica —o de John Nelson Darby, pregador irlandês do século 19. Para ele e sua seita, é imperioso apressar o apocalipse, contribuir para que o mundo soçobre e Deus venha logo acudir os bons e fazer churrasco dos maus.
Ao enveredar por essa senda, “Apocalipse nos Trópicos” soçobra na ambiguidade. Às vezes, analisa a política de maneira racional. Noutras, tem visões. Numa delas, a hecatombe da democracia brasileira anuncia o Juízo Final. São pensamentos perplexos.
No fim, o filme justapõe duas imagens escatológicas do 8 de janeiro: um homem exibindo a bunda e, em seguida, senhoras de verde e amarelo rezando a Bíblia na Câmara.
A sequência propicia uma revelação: ora acamada, a Besta golpista segue viva: tem dez chifres e sete cabeças, assemelha-se a um leopardo com patas de urso e boca de dragão (Apocalipse 13,1).
Fonte ==> Folha SP