Nesta semana voltaram à tona notícias sobre emendas parlamentares milionárias destinadas a supostos projetos sociais de organizações sem fins lucrativos suspeitas, especialmente no Rio de Janeiro. Essas operações são apelidadas ironicamente de “farra das ONGs”.
O apelido não é mero detalhe, nem inocente: ele desvia o foco do problema, do cerne da questão: as emendas parlamentares e o controle sobre esses repasses. Tratar como farra de ONGs o sistema das emendas gera impacto extremamente negativo sobre a percepção da população em relação às organizações da sociedade civil, que são importantes parceiras do Estado na execução de serviços públicos fundamentais.
Em 2024, o estado de São Paulo transferiu para “ONGs” cerca de R$ 19 bilhões, sendo 87% desse valor destinado à saúde —administração de hospitais, postos de saúde etc. Um percentual ínfimo desse montante tem seu uso reprovado pelo Tribunal de Contas.
As parcerias são regidas pela lei 13.019/2014, que impõe o chamamento público —procedimento de seleção— como regra para que uma organização celebre um termo de colaboração com o poder público. No entanto, os recursos oriundos de emendas parlamentares são exceção a essa regra, bastando a indicação do parlamentar para organização de sua preferência.
A definição de quais organizações recebem os recursos carece de transparência. Embora os gastos devam, em tese, ser fiscalizados —com prestação de contas, avaliação de resultados, entre outros mecanismos legais—, a prática muitas vezes revela falhas no controle.
Ora, vemos casos na mídia a todo instante de empresas fantasmas, de caixa dois etc. Mas ninguém questiona o modelo jurídico das empresas no país. Não temos a “farra das limitadas” nas manchetes. Da mesma forma, é preciso refletir sobre o tratamento que fundações e associações sem fins lucrativos, formatos legais do chamado “terceiro setor”, têm na mídia e o quanto isso colabora para a criminalização de parceiros fundamentais do Estado, para a consecução dos serviços públicos e para movimentos sociais legítimos.
A chamada “farra das ONGs” envolve pouco mais de 30 organizações, dentre as mais de 800 mil organizações da sociedade civil ativas no país. Portanto, se há repasses suspeitos, a responsabilidade não é do setor, mas de quem manipula as emendas parlamentares em benefício próprio. Vamos dar nome aos bois: a farra é dos parlamentares.
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Fonte ==> Folha SP