O conflito no Oriente Médio é tão agudo que a satanização ficou corriqueira. Quem apoia os palestinos é xingado de antissemita ou simpático ao terrorismo. E quem defende a guerra de Israel em Gaza é tachado de genocida.
É-se a favor de um dos lados –e estamos conversados. Contudo, saber é superior a não saber. Estudar não é sinônimo de concordar. Ser simpático a alguém não significa querer destruir outrem.
“Hamas: The Quest for Power” (Polity, 331 págs.) Livro de escapa ao maniqueísmo ao traçar o retrato do Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas.
Seus autores são a professora Beverley Milton-Edwards, especialista em movimentos armados no Oriente Médio, e o jornalista Stephen Farrell, correspondente do New York Times em Israel.
O Hamas foi criado, em 1987, na casa de um sacerdote muçulmano de 50 anos, Ahmed Yassin, cadeirante desde os 12. Ele juntou uns poucos profissionais numa organização que se propunha a conduzir os palestinos pelo bom caminho: o Corão. “A busca do poder” sustenta que, se a organização pudesse ser resumida a uma palavra, ela seria “islâmico”.
Seu documento de fundação é antissemita. Baseado numa fraude escrachada, “Os Protocolos dos Sábios do Sião”, responsabiliza os judeus pelas revoluções Francesa e Russa, pelo Rotary e pelo Lyons Clube. Prega a destruição de Israel por roubar as terras dos palestinos e usurpar locais sagrados do islamismo, Jerusalém à frente. E se define como “a voz do vulcão”.
O combate aos “infiéis” e à modernização levou-o a uma luta obstinada contra as organizações seculares reunidas na Organização pela Libertação da Palestina, OLP. Na prática, exigia-se que os homens do Hamas fossem puritanos, machistas, abstêmios e inflexíveis com os corruptos –por vezes punidos com a morte.
Seus ataques à ocupação militar se agudizaram conforme a sociedade palestina se radicalizava, sobretudo os jovens e desempregados. Na primeira Intifada (1987-93), o Hamas aderiu ao levante e, sem armas, apedrejava tanques. Na segunda (2000-2005), tornaram-se terroristas e suicidas: homens-bomba.
Segundo “The Quest for Power”, o Hamas é pragmático. Em 2006, depois de décadas de recusa intransigente a qualquer contato com Israel, decidiu participar das eleições nos territórios ocupados –não só elogiadas como cacifadas pelos Estados Unidos e pela Europa, além de Israel.
Deu-se o impensável: o Hamas venceu a eleição. Os palestinos haviam se cansado da brutalidade israelense, da corrupção da OLP e do cinismo dos países árabes, que fingiam apoiá-los.
O Hamas teve de aprender que uma coisa é ser um movimento radical; outra, governar Gaza. E governar com a hostilidade de Tel Aviv, Washington e Bruxelas.
O Hamas tentou se adaptar à nova situação. De um lado, lançava foguetes contra Israel e sequestrava seus soldados. De outro, reescrevia seu documento de fundação: abandonou o antissemitismo e reconheceu as fronteiras árabe-israelenses de 1967, até então um anátema.
A organização não conseguiu nada de concreto e preparou-se para a guerra. Cavou em Gaza uma quilométrica rede de túneis e estocou armas. Queria abalar a imagem de que Israel é David; e os países árabes que o cercam, Golias. Para o Hamas, Israel é uma potência nuclear, financiada e armada por Washington, e os palestinos, um povo pequeno, pobre e solitário –que no entanto venceria seu poderoso inimigo.
O plano foi posto em prática no 7 de Outubro. As imagens de palestinos invadindo Israel de paraglider foram festejadas na Cisjordânia e em Gaza. O Hamas matou 695 civis israelenses, 71 estrangeiros e 373 militares. Obteve o que queria: traumatizar o inimigo. Venceu Golias.
Milton-Edwards e Farrell fazem uma descrição meticulosa do ataque. Deixam claro que o Hamas massacrou um festival de música, fuzilou, humilhou, sequestrou, cometeu crimes de guerra. E dizem não terem visto provas de que crianças tenham sido decapitadas e não falam de estupros.
O Hamas também perdeu, e muito: 50 mil palestinos foram mortos por Israel, a maioria esmagadora de civis, crianças e mulheres; dois milhões foram expulsos de suas casas; Gaza é um monte de escombros; faltam casas, escolas, hospitais; a crise sanitária é permanente. Com a ruptura da trégua, Israel matou cerca de 700 palestinos nos últimos três dias.
Milton-Edwards e Farrell não fazem previsões. No máximo, escrevem: “Não se deve subestimar o Hamas”.
E um dirigente da organização lhes disse uma frase significativa: “Não temos pressa”.
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Fonte ==> Folha SP