29 de junho de 2025

Jabuti na MP do IOF pode comprometer seguro-defeso de mais de 1 milhão de pescadores artesanais

Neste domingo (29), Dia do Pescador e da Pescadora, comunidades pesqueiras de todo o país vivem um cenário de apreensão. O motivo é um artigo incluído na Medida Provisória (MP) 1.303/2025, que, apesar de tratar originalmente de tributação, alterou regras fundamentais do seguro-defeso – benefício pago durante o período de reprodução das espécies, quando a pesca é proibida.

O seguro-defeso beneficiou 1.189.856 pescadores em 2024, com repasses que somaram aproximadamente R$ 6 bilhões, segundo dados do Portal da Transparência. A MP, no entanto, estabelece novas condições para o acesso ao benefício, que podem, na prática, excluir grande parte da categoria.

A medida provisória se insere em uma novela que começou há pouco mais de um mês: o cabo de guerra entre governo e Congresso por conta da tentativa de mudança na cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A disputa terminou nesta semana com mais uma derrota do governo diante do Legislativo.

Entretanto, assim que percebeu a probabilidade de perder na tentativa de elevar o IOF via decretos, em 11 de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou uma MP reajustando uma série de outros tributos. Trata-se da MP 1.303, em vigor atualmente, com a qual o governo visa arrecadar R$ 10 bilhões ainda neste ano.

O jabuti está nas últimas páginas da medida, no artigo 71, dentro das disposições finais. Ele altera dois artigos da lei 10.779/2003, também conhecida como Lei do Seguro-Desemprego do Pescador Artesanal, ou lei do seguro-defeso. Em resumo, a MP condiciona o benefício à validação do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) pelo municípios e limita o pagamento aos recursos previstos no orçamento anual.

A nova exigência preocupa organizações sociais e lideranças das comunidades. Marcelo Apel, do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), critica duramente o dispositivo. “Mais de 50% dos conflitos relatados pelas comunidades pesqueiras têm como causador direto as prefeituras. E agora querem dar para elas o poder de dizer quem é pescador e quem não é? Isso vai virar uma moeda política.”

O risco, segundo ele, é transformar o direito em barganha. “Em muitos municípios, os pescadores já estão sendo removidos para dar lugar a marina de luxo ou projeto turístico. Como confiar que essa mesma prefeitura vai garantir o direito do pescador?”

O Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras (2024), elaborado pelo CPP, mostra que em 55,1% dos casos sistematizados, o executivo municipal foi identificado como agente de conflito. Os dados apontam o apoio das prefeituras a empreendimentos como portos, usinas e condomínios turísticos que impactam territórios pesqueiros.

Rosângela Silva do Nascimento, presidenta da Colônia de Pescadores de Natal e da Federação de Pesca do RN, reforça a denúncia. “A luta pelos territórios é grande. Quando o patrimônio da União passa para a prefeitura, ela urbaniza, faz prédio, passa para os gringo. Então a gente vai sendo empurrado. Já são muitos anos que a gente tá lutando contra isso.”

“O pescador artesanal, o trabalhador que sobrevive da pesca, vai ficar na mão de político. Depender de uma homologação de uma prefeitura que vai ser moeda de troca de voto. Isso que a gente tá vendo”, assevera a pescadora.

MP também limita orçamento e pode excluir beneficiários

Outra mudança está nos novos parágrafos do artigo 5º da Lei do Seguro-Defeso. A partir de agora, o benefício estará condicionado à dotação orçamentária aprovada no início do ano. Isso significa que, mesmo cumprindo todos os critérios, pescadores e pescadoras poderão ter o benefício negado por falta de verba.

Para Marcelo da Costa, a medida representa um risco grave e se insere em um contexto de pouco incentivo à pesca artesanal em detrimento da produção industrial de pescados. “Hoje a gente está num momento de total incerteza. Pode ser 10%, pode ser 80%, pode ser todo mundo. É um cenário de insegurança total para quem vive da pesca artesanal.”

“O Ministério da Pesca incentiva a aquicultura, mas não dá o mesmo tipo de incentivo para a realidade da pesca artesanal. É um problema sério”, completa.

Atualmente, o benefício é pago pelo com recursos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com recursos provenientes do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT).

Governo defende mudanças como combate a fraudes

O Ministério da Pesca e Aquicultura afirma que as alterações visam garantir que o seguro-defeso chegue apenas a quem realmente tem direito. Entre os objetivos estariam o reforço na fiscalização, a comprovação contínua da atividade pesqueira e o aperfeiçoamento do Registro Geral da Atividade Pesqueira.

Na última quarta-feira (25), o governo publicou o Decreto nº 12.527/2025, que regulamenta o artigo 71 da MP. O texto estabelece diretrizes para atualizar os cadastros e monitorar a atividade, com participação também do Ministério do Meio Ambiente.

Representante do centrão no governo, o titular da pasta da Pesca, André de Paula (PSD), defendeu as novas regras. “O novo decreto aprimora os critérios de concessão do benefício, fortalece a integridade da base de dados e amplia os mecanismos de controle.”

As lideranças das comunidades, no entanto, contestam o argumento. Rosângela reconhece que fraudes pontuais ocorrem, mas alerta: “fraude não se combate tirando o direito de quem depende da pesca para viver. Tem que fiscalizar com justiça, não punir todo mundo.”

Marcelo Apel concorda com a necessidade de regras claras, mas alerta para o risco de um discurso continuado de fraudes que generalize a categoria. “No tempo do Bolsonaro, ele dizia: ‘75% dos pescadores são falsos’. Eu analisei 10 anos de portarias de cancelamento de carteiras de pescadores que seriam os falsos e tinha 1,2 milhão de carteiras. Eles cancelaram 300 mil. A conta não bate. Mais de 70% dos pescadores seriam legítimos e 30 e poucos por cento que seriam falsos”, explica.

“Nunca houve universalização do acesso ao seguro defeso. Sempre teve uma trava, sempre teve um impedimento no meio do caminho. Então é um direito que já veio com problema, que a gente tem que lutar todo ano para garantir”, conclui.

Emendas e mobilização em Brasília tentam barrar mudanças no seguro-defeso

Na tentativa de evitar que as novas exigências da MP 1.303/2025 entrem em vigor, a deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) protocolou três emendas ao texto original. As propostas visam preservar o direito das comunidades pesqueiras ao seguro-defeso e eliminar os dispositivos que, segundo os pescadores, colocam em risco o acesso ao benefício.

As emendas apresentadas preveem:
– a retirada do parágrafo que condiciona a concessão do seguro à homologação municipal do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP);
– a supressão do trecho que limita o pagamento do benefício à dotação orçamentária anual;
– e uma nova redação que transfere a validação do cadastro para órgãos federais como o INSS, o Ministério da Pesca e o Ibama, e estabelece o caráter obrigatório e prioritário do seguro no orçamento público.

A parlamentar considera que parte das modificações promovidas pela medida provisória pode atingir diretamente os trabalhadores que vivem da pesca artesanal. Para ela, ainda que o combate a fraudes seja legítimo, as mudanças podem “acabar sobrando para o pescador artesanal, para os pequenos produtores”.

Segundo Bonavides, é preciso garantir que o processo de análise para concessão do benefício não penalize justamente quem mais depende dele. “A gente não pode deixar que isso aconteça. Então propusemos as emendas, em diálogo com a categoria, para solucionar essas questões.”

As mobilizações contra a medida seguem ganhando força. No próximo dia 8 de julho, pescadores e pescadoras de diferentes estados devem ir a Brasília, com apoio da Confederação Nacional dos Pescadores e Aquicultores (CNPA) e de federações regionais. A agenda inclui reuniões com parlamentares e protestos em frente ao Congresso Nacional.

Rosângela Silva do Nascimento, presidenta da Colônia de Pescadores de Natal e da Federação de Pesca do RN, reforçou que, se o Congresso não reverter as mudanças, o caminho será a judicialização. “Se não derrubar, nós vamos entrar no Supremo, porque com certeza isso é muito inconstitucional. Não tem condição um negócio desse.”



Fonte ==> Brasil de Fato

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