Uma mulher de preto, os cabelos grisalhos de um prata intenso escovados para um lado e batom vermelho na boca, se senta diante da plateia em silêncio. Uma moça traz um pedaço de pão, que ela mordisca, devagar, metódica, cirúrgica. O ato leva uns 20 minutos que parecem uma eternidade —a trilha sonora é exasperante, nada mais que o ranger das cadeiras do teatro, alguém tossindo, barrigas roncando, uma criança que resmunga.
No fim, ela ergue diante do rosto o pedaço de pão com um buraco devorado no meio, um rombo no formato do mapa do Brasil. É um troféu às avessas, exibido ao público como se fosse uma prova num tribunal, um atestado da indigência do país, seu mapa da fome feito daquilo que mata a fome.
“O Pão Nosso de Cada Dia” é o nome da performance. Sua intérprete, Anna Bella Geiger. A artista, hoje com 92 anos, fez essa mesma ação no fim da década de 1970, em plena ditadura militar. Ela lembra que o marido havia sido preso pelo regime e a solidão dela, uma artista mãe de quatro filhos para criar, filha de imigrantes judeus de origem polonesa que chegou na década de 1930 ao Rio de Janeiro, onde ela ainda vive.
Quase meio século depois, seu ato de devorar o país não perdeu a voracidade. Os fantasmas e saudosistas da ditadura ainda rondam, a miséria vai e vem, a desigualdade no país de desvalidos ainda grassa. É extraordinário, aliás, ver a extraordinária artista repetir o mesmo gesto sem que ele pareça datado, porque não é.
E, no estranho vórtice temporal em que estamos metidos, sua ação reverbera em outras lembranças. Enquanto uma nova versão em alta definição da clássica “Vale Tudo” vai ar na TV Globo todas as noites, nos levando de volta à década de 1980 e seus escândalos de corrupção, a exposição “Fullgás”, agora no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, nos faz lembrar a trilha sonora hedonista de então que falava noutra coisa, uma tentativa, um plano, frustrado, de fazer um país, na contramão de o devorar.
Os versos de Antonio Cicero, que viraram um hino na voz da irmã Marina Lima, voltaram a ecoar no palco na abertura da mostra, a própria cantora, outra mulher extraordinária, a cantar para os artistas e convidados do vernissage, uma performance intimista de dimensão continental como o Brasil.
Essas duas artistas, aliás, estão unidas pelos escritos de Cicero, morto no ano passado, determinado a encerrar a vida diante de uma doença incurável. É dele e da irmã a letra de “Anna Bella”, com versos que falam não de um mapa da fome, mas de outro. “Eu vi no mapa do mundo, que Anna Bella desenhou, que a região do desejo não é exatamente a do amor”, diz a letra.
A canção foi tocada no Teatro Unimed, em São Paulo, logo antes da chegada de Anna Bella Geiger ao palco. Depois da performance, a artista lembrou que imaginou o trabalho a partir do vazio que enxergava no Brasil de então e no Brasil de agora. Disse várias vezes que ainda está aqui para ver e, por que não, voltar a devorar a nação que devora os seus cidadãos. Os versos de Cicero, aliás, se alinham a esse desejo. Marina Lima canta ali sobre um “salto vital, sobre a cidade, a burrice e o mal”. É disso que, de braços abertos, talvez se consiga fazer um país.
RETROSPECTIVA Em tempo, o Museu Judaico de São Paulo abre no fim deste mês uma retrospectiva de Anna Bella Geiger, com cerca de 60 obras, entre gravuras, vídeos e fotografias da artista. Serão exibidos trabalhos criados ao longo de seis décadas, de 1962 a 2023.
Fonte ==> Folha SP