16 de abril de 2025

Missivista contumaz – 18/02/2025 – Opinião

Primeira Página de 16 de janeiro de 1985

Aprendi a ler com seis anos, devido às brincadeiras de escolinha na rua. Lia todo e qualquer pedaço de papel com algo escrito, mas a leitura regular da Folha só foi acontecer no tempo final da faculdade, em 1989. Junto com colegas de laboratório do grupo de pesquisa na Unicamp, cotizamos uma assinatura para que nos atualizássemos para além da química que estudávamos. Eram os tempos da redemocratização, vésperas da tão esperada eleição para presidente da República. A ânsia por notícias era enorme.

Quem tinha endereço mais fixo e mais central e chegava bem cedo ao laboratório ficava responsável por ser o titular da assinatura. Dessas primeiras leituras, saiu minha primeira carta publicada na Folha, criticando o uso do acento no “pão de fôrma” em reportagem sobre o então príncipe Charles —acento que voltou à legalidade com a reforma ortográfica posterior.

Tornei-me um missivista contumaz, não havendo semana em que não envie ao menos três cartas para o Painel do Leitor. Publicam algumas. Na Folha, o padrão é sair a carta publicada na edição seguinte; se não sair, é continuar escrevendo sobre outra reportagem ou artigo, pois aquela já é letra morta. Mas houve exceções, surpreendendo com a publicação da carta dias depois.

Uma ponta de decepção não é ter a carta preterida, mas ficar sem saber se ela foi lida e não encontrou espaço para integrar o Painel do Leitor pois outro correligionário foi o escolhido. Nunca somos avisados se haverá publicação e aqui fica uma pequena crítica, uma vez que os missivistas poderiam ser mais valorizados pelo jornal —não por remuneração, longe disso, mas com uma troca mais comunicativa.

Nem todos os leitores comentam online sobre as notícias, fórum restrito a assinantes. Podiam resgatar o Painel do Leitor expandido na versão online, incluindo o que sai na versão impressa com mais outras cartas escolhidas. De qualquer forma, acho que deveriam ser duas páginas inteiras para as cartas. Hoje é uma só e dividida com Acervo, Erramos, Expediente e outras informações, o que dá cerca de 60% de uma página padrão berliner. É pouco pelo tamanho da Folha.

Nossa relação —entre mim e a Folha— se parece como qualquer outra interação humana: concordamos às vezes, discordamos muito e mantemos a interlocução. Pelo menos eu mantenho minha leitura diária do jornal —agora na versão digital. Em tempos em que a pós-verdade e as narrativas paralelas viraram realidade, é bom ter uma fonte segura para se informar. A qualidade jornalística sabemos que tem sido comprometida ao longo do tempo, devido principalmente à migração do impresso para o digital e à queda nos números de anunciantes e assinantes. A nova dinâmica levou à redução das Redações e a uma simplificação da forma como o fato é conhecido, avaliado, confirmado, redigido e publicado. Jornalismo de qualidade é também saber contar uma história, ainda que os fatos cotidianos parecem prescindir de tal pressuposto.

Gosto dos analistas que preenchem os espaços de opinião espalhados pelo jornal, especialmente os da página A3, com os quais tento alguma conversa por meio das cartas. Já entendi que há alguns que não podem ser confrontados, pois não publicam cartas que ousam contestar colunas específicas. Também já travei interlocução com articulistas e autoridades objetos de alguma reportagem que responderam a meus questionamentos. É raro, mas aconteceu.

Agradecendo e usando a oportunidade de compor este texto, resta um friozinho na barriga de passar de estilingue a vidraça, externando opinião que pode ser analisada e criticada por leitores como eu. Será um desafio.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.



Fonte ==> Folha SP

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