Até pouco tempo, Legendários era apenas o nome de um programa de televisão da Record (2010), vendido como humorístico, mas que raramente arrancava risos. Agora, ganhou novo significado: batiza um movimento religioso voltado exclusivamente para homens, com a promessa de restaurar masculinidades feridas por meio de retiros espirituais repletos de suor, gritos e trilhas pesadas. O patriarcado suando sob a luz de headlamp.
Mas se a proposta é resgatar o que haveria de nobre no masculino, vale perguntar: que tipo de homem se deseja formar? O Cristo dos Evangelhos, afinal, não foi ao mato levantar peso nem conclamou seus discípulos à virilidade. Lavou pés, chorou com amigas, andou com mulheres e morreu nu, exposto e vulnerável. Hoje, talvez não tivesse credenciais para participar de um encontro dos Legendários: era pobre, falava de justiça, chorava em público — e mais: não teria dinheiro para pagar o pacote. O homem idealizado pelo grupo parece menos inspirado em Jesus e mais moldado pela ansiedade de reafirmação.
O sucesso dos Legendários deve ser compreendido em um contexto mais amplo: a tentativa de reconfigurar a masculinidade cristã num país em permanente disputa moral, oferecendo o retorno de uma figura arquetípica. O “homem de Deus” forte, viril, espiritualizado, rústico e autocentrado. Uma reação à crise de identidade masculina contemporânea, travestida de espiritualidade. O que se apresenta como cura da alma é, na verdade, reinvenção do patriarcado em linguagem gospel.
No fim das contas, o que os Legendários oferecem é uma masculinidade reciclada — esteticamente atualizada, mas estruturalmente arcaica. Um refúgio emocional para homens que se dizem em crise, mas que, na prática, estão desconfortáveis com o fato de não ocuparem mais, sem contestação, o centro do mundo. A floresta, o grito, o suor e a ausência deliberada de mulheres formam o cenário de uma reconstrução que, embora embrulhada como espiritualidade, é profundamente política: o desejo de restaurar o homem como medida de todas as coisas.
No lugar do Nazareno que suou sangue diante da morte, chorou por amigos e se angustiou com o abandono, ergue-se um novo ídolo: o homem inviolável — ou imbrochável (Foto: Divulgação)
Nesse ajuntamento viril, há uma heterossexualidade estranhamente ansiosa. Homens que só se sentem à vontade para falar de si, de seus afetos e traumas, quando cercados exclusivamente por outros homens — no escuro da mata, longe dos olhares femininos e da cidade que os desafia. Dizem amar as mulheres, mas confiam seus dramas apenas a homens, se curam com homens, e só na presença de homens tratam do que julgam mais essencial. As mulheres, nesse arranjo, não são interlocutoras: são destinatárias, troféus, consequência. A masculinidade legendária é, antes de tudo, um pacto simbólico entre iguais, sustentado por exclusão e controle.
Essa ideia filtrada de homem ideal ganha ainda mais força quando encarnada por subcelebridades. O movimento se vale de influenciadores, empresários e ex-BBBs para difundir sua mensagem com verniz de lifestyle. Um cristianismo de vitrine, moldado para o feed do Instagram: musculoso, limpo, bem vestido, empresarial, emoldurado por filtros sépia e trilha sonora calculadamente emocional.
A alegação de que os Legendários “não fazem política” é, por si só, profundamente política. A suposta neutralidade do movimento funciona como blindagem: evita debates incômodos, silencia questões estruturais, naturaliza privilégios. A espiritualidade introspectiva desloca o foco para o indivíduo e, assim, não se fala em desigualdade, racismo, feminicídio, violência do Estado ou desmonte de direitos — apenas em “curar o coração”, “se reconectar com Deus” e “liderar com propósito”.
Essa reconstrução da masculinidade não caminha sozinha. Carrega o velho script da supremacia. Apaga até mesmo as vulnerabilidades do Cristo que dizem seguir. No lugar do Nazareno que suou sangue diante da morte, chorou por amigos e se angustiou com o abandono, ergue-se um novo ídolo: o homem inviolável — ou imbrochável. Uma masculinidade blindada, endurecida e hipertrofiada, que apaga a face mais escandalosa do Evangelho: a de que Deus, em Jesus, não venceu por ser mais forte, mas por se deixar ferir.
Fonte ==> Casa Branca