18 de abril de 2025

No meio do caminho

No meio do caminho

Em 1975, o Brasil celebrou com a Alemanha Ocidental um acordo nuclear para fins pacíficos. O conhecimento poderia até ter permitido uma conversão da técnica para o campo militar. Mas isso nunca aconteceu, graças a uma combinação de fatores apontados por Dawisson Belém Lopes e João Paulo ­Nicolini Gabriel no artigo Who´s to Blame for the Brazilian Nuclear Program Never Coming Age (De Quem É a Culpa pelo Programa Nuclear Brasileiro Nunca Ter Chegado à Maioridade), publicado pela revista científica Science and Public Policy, da Universidade Oxford. Passados mais de 50 anos, “o custo de se engajar em uma postura desafiadora ao regime de não cartacapital.com.br/tag/energia-nuclearé extremamente alto” agora e, se o Brasil tentasse, “pagaria um preço como aquele que paga, por exemplo, um país como o Irã”, afirma na entrevista a seguir Dawisson Belém Lopes, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais.

CartaCapital: Em que medida a coo­peração nuclear com a Alemanha podia ser convertida para fins militares?
Dawisson Belém Lopes: A natureza do ciclo completo faz com que as fronteiras entre usos civis e militares sejam tênues. Técnicas de enriquecimento e reprocessamento de plutônio, quando dominadas, conferem a um país a capacidade técnica de produzir material físsil de grau bélico. Isso significa que, embora o acordo previsse salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em tese destinadas a impedir desvios para fins militares, o domínio tecnológico adquirido poderia, em circunstâncias políticas diferentes, ser reaplicado para um programa de armas. Embora o pacto de 1975 estivesse formalmente restrito à “energia nuclear para fins pacíficos”, ele incluía a transferência de tecnologias sensíveis que, em um cenário de reversão política ou de desrespeito às salvaguardas, poderiam ser redirecionadas para a obtenção de material físsil para armas. Essa ambiguidade foi a fonte de preocupação de Washington e de outras potências nucleares, levando ao estabelecimento, em março de 1976, de um protocolo tripartite de salvaguardas entre Brasil, Alemanha Ocidental e AIEA, que buscava reforçar os mecanismos de inspeção e controle do material e do conhecimento transferidos.

Aquém. O programa gerou pouco frutos ao longo do tempo, afirma Lopes – Imagem: Redes Sociais

CC: Por que o Brasil demorou 28 anos para aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear?
DBL: Vários fatores retardaram a adesão. Primeiro, o Brasil quis preservar o direito soberano de desenvolver a tecnologia nuclear completa, sem se subordinar aos rígidos controles que o TNP impunha desde o início. Em segundo lugar, o País privilegiou a criação de uma zona livre de armas nucleares na América Latina, por meio do Tratado de Tlatelolco. O Brasil assinou Tlatelolco em maio de 1967, mas manteve até 1994 uma reserva de interpretação (waiver) ao artigo 29.2, que exigia salvaguardas completas, justamente para não prejudicar seu programa pacífico de enriquecimento. Mas foi somente após a criação da Agência Brasileiro–Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) e do Acordo Quadripartite Brasil–Argentina–AIEA (1991) que o Brasil passou a contar com um sistema de salvaguardas bilaterais robusto. Isso abriu caminho para que, em 1994, o País renunciasse formalmente à reserva de interpretação de Tlatelolco e, em 1998, depositasse seu instrumento de adesão ao TNP em Londres, Moscou e Washington.

CC: O debate sobre a bomba é expressivo em algum setor político no Brasil?
DBL: Esse debate sempre foi, desde os anos 1970, bastante marginal e permeado por visões muito diversas, sem adesão oficial de nenhum grande partido ou governo. Mesmo na época da ditadura, quando existiam diferentes “vertentes” militares explorando tecnologias sensíveis (Aeronáutica, Exército e Marinha), não havia um consenso político sobre converter esse know-how em armamento. Antes, tratava-se de buscar autonomia tecnológica e prestígio internacional. Nas décadas seguintes, o tema manteve-se num nicho muito restrito, habitado por algumas correntes nacionalistas, ora de esquerda, ora de direita, que viam na bomba um símbolo de soberania plena.

Hoje, “o custo (político) de uma bomba atômica tornou-se muito alto”

CC: O que deu errado com o programa nuclear brasileiro?
DBL: A melhor referência aqui é a tese de doutorado de João Paulo Nicolini Gabriel, segundo a qual o programa nuclear brasileiro teria sido vítima de quatro vícios: isolamento dos burocratas responsáveis pelo programa e falta de cooperação com cientistas e empresários locais, supressão à comunidade científica, repressão política e desconfiança do saber acadêmico, salto de fases – em vez de desenvolver tecnologia própria, o Brasil tentou comprar soluções prontas – e falta de rea­lismo, pois o governo ignorou entraves técnicos e políticos dos parceiros estrangeiros. Essa combinação de fatores resultou em um programa que, embora grandiloquente no discurso dos militares, entregou pouco em termos práticos.

CC: O Brasil deveria investir hoje em um programa nuclear com fins militares? Quais seriam os ganhos de o ­País ter a capacidade de desenvolver armas atômicas? Valeria a pena? Seria uma boa estratégia?
DBL: A resposta a esta pergunta não é trivial, pois envolve relembrar tanto as bases doutrinárias de nossa diplomacia pacifista quanto os compromissos assumidos na Constituição Federal de 1988 e em diversos tratados internacionais com a renúncia às armas nucleares. É inegável que, em uma ordem internacional cujos pressupostos normativos parecem ruir diante dos nossos olhos, a detenção de ogivas nucleares exerce, sim, capacidade dissua­sória, protegendo nosso território de investidas estrangeiras. Receio, todavia, que o momento para esse tipo de ousadia tenha ficado para trás. Sem entrar no mérito moral da escolha, o custo de se engajar em uma postura desafiadora ao regime de não proliferação nuclear é extremamente ­alto. O Brasil pagaria um preço ­como aquele que paga um país como o Irã. •

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No meio do caminho’



Fonte ==> Casa Branca

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