No último domingo, em horário nobre, a TV Globo usou o Fantástico para anunciar a estreia da série documental Crentes: além dos muros, uma produção da Globonews já disponível no Globoplay. A proposta é retratar o crescimento exponencial da fé evangélica no Brasil, sobretudo a partir das chamadas igrejas de bairro, pequenas congregações enraizadas nas periferias das grandes cidades. A série se dedica a mostrar como essas igrejas se tornaram redes locais de solidariedade, fé e acolhimento. Em vez dos grandes templos, dos pastores midiáticos ou das arenas lotadas por megaeventos gospel, o foco está nos espaços improvisados em garagens ou salões, onde o vínculo espiritual se confunde com a construção de uma nova sociabilidade.
O título Crentes não é inédito no universo da Globo. A última vez que a emissora o utilizou foi em 2017, no extinto programa de humor Tá no Ar: a TV na TV, comandado por Marcelo Adnet. Na ocasião, “Crentes” era uma esquete satírica inspirada na estética do seriado Friends — com direito a música de abertura que cantava “Pago o dízimo: 10% para o pastor”. O material também está disponível no Globoplay. Oito anos depois, o mesmo título batiza uma série documental de tom sensível, respeitoso e afetivo. A mudança diz muito: o que antes era objeto de riso agora é matéria de reverência. Um giro cultural na forma como a emissora, e parte do campo progressista, tem buscado se reaproximar de um público que antes olhavam com distância e estranhamento.
Por trás da ótica suavizada, há escolhas editoriais contundentes. A tragédia social é embalada em papel de presente. A ausência do Estado se transforma em um plano divino de superação. São histórias de recomeço, como a de uma mulher em que reconstrói sua vida conjugal pela fé, ou das fiéis que enfrentam a violência com ações solidárias. Uma espécie de estetização da miséria sem discussão sobre a precariedade estrutural, nem sobre o abandono histórico dessas populações pelas políticas públicas. O milagre, geralmente, é a coletividade sendo empurrada a resolver sozinha seus próprios problemas. A carência é ressignificada como virtude; a falta de escola, saúde e segurança são tratadas como oportunidade para a igreja exercer seu “papel social”.
O documentário foca na porta aberta da igreja, mas não mostra o que ela exige para manter-se assim
Crentes firma um pacto estético com a teologia do acolhimento – que suaviza as fronteiras da doutrina, evita o confronto ideológico, apresenta a fé como rede de apoio. É um reposicionamento estratégico da TV Globo, que busca reatar os laços com um público que se afastou da emissora nos últimos anos, influenciado por discursos moralistas e campanhas de boicote promovidas por lideranças religiosas. A tentativa não é nova: em Vai na Fé (2023), última novela das sete com audiência mais destacável, a protagonista era uma mulher evangélica, e sua fé não era alvo de crítica, mas de construção positiva.
Dentro dessa perspectiva, a igreja surge como refúgio e solução. Mas a narrativa não se pergunta: refúgio de quê? Solução para quê? Quando a série mostra uma igreja que oferece atendimento médico, cursos de tecnologia, atividades esportivas para crianças e assistência a dependentes químicos, o tom é de exaltação — como se essas ações fossem manifestações espontâneas de generosidade, e não respostas precárias à ausência do Estado. Por que essas comunidades precisaram criar um sistema paralelo de saúde, educação e assistência social? As igrejas devem ocupar o vácuo da responsabilidade pública? O risco é evidente: transformar a precariedade em virtude espiritual. O abandono se converte em oportunidade de resiliência.
A escolha editorial também silencia figuras controversas e higieniza o campo evangélico para torná-lo mais palatável ao público progressista. O espectador é conduzido por um universo de igrejas “boas”, onde todos são acolhidos, onde o foco está no afeto. Um gesto estético e político que separa, artificialmente, o “evangelho puro” das tensões ideológicas que atravessam o evangelicalismo brasileiro. Mas essa separação é ilusória. As pequenas igrejas de garagem, por mais humildes e sinceras que sejam, também integram uma rede de circulação de ideias, doutrinas e alianças que, em muitos casos, alimentam — direta ou indiretamente — o fundamentalismo religioso.
Os depoimentos e imagens revelam uma dinâmica cotidiana onde o fiel oferece sua força de trabalho, seu tempo, sua dedicação, e em troca recebe pertencimento, identidade e alguma forma de assistência material. A igreja vira escola, posto de saúde, centro de reabilitação, núcleo familiar. O problema não está na solidariedade comunitária, mas na normalização de que esse é o novo modelo de cidadania possível. É uma economia moral da fé: um sistema de compensações simbólicas e práticas onde o abandono estatal é preenchido pela espiritualidade, apresentado como resistência e reinvenção popular. O fiel “vence” não porque seus direitos foram garantidos, mas porque soube se adaptar à ausência deles — e a igreja, nesse arranjo, vira a nova gestora da esperança.
Crentes foca na porta aberta da igreja, mas não mostra o que ela exige para manter-se assim: adesão comportamental, obediência a uma hierarquia masculina, rejeição à diversidade sexual e repressão às subjetividades que escapam do padrão heteronormativo. A mensagem que se propaga é a de um espaço onde todos são bem-vindos — desde que se encaixem. Um dos fenômenos político-religiosos mais decisivos da história recente do Brasil se torna mera coleção de histórias edificantes, de superação pessoal. Olhar apenas para o que há de terno, singelo e solidário nesse universo diz muito sobre o momento midiático e eleitoral que atravessamos. Descolando o movimento de suas dimensões ideológicas, econômicas e institucionais, temos um retrato bonito, mas incompleto. E que, como toda imagem parcial, pode alimentar ilusões sobre quem somos e para onde estamos indo.
Fonte ==> Casa Branca