19 de dezembro de 2025

O cansaço como base para um sistema patriarcal e racista – 19/12/2025 – Djamila Ribeiro

Na ilustração de fundo amarelo, uma mulher está sentada confortavelmente sobre um puff lilás e algumas almofadas, enquanto lê um livro. Ela tem os cabelos volumosos e usa um vestido rosa.

Há algumas semanas, quando escrevi nesta coluna sobre o feminicídio de Catarina Kasten, manifestei minha solidariedade às suas amigas e colegas de trilha e comentei como a necessidade permanente de vigilância é profundamente danosa à saúde das mulheres. Na coluna desta semana, proponho aprofundar essa reflexão.

O estado de alerta contínuo em que vivem as mulheres diante do medo de sofrer violência sexual por homens está amplamente documentado. Destaco a pesquisa “Percepções sobre estupro e aborto previsto por lei”, realizada em 2020 pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, na qual 95% das mulheres afirmaram ter medo cotidiano de serem estupradas —sendo que 78% declararam sentir muito medo. Entre os homens, 92% disseram temer que filhas, mães, esposas ou namoradas sejam vítimas desse crime.

No caso das mulheres, o machismo que estrutura as relações sociais produz, diariamente, uma série de mensagens sutis —e não tão sutis— sobre quais são seus lugares na sociedade. Uma recente reportagem de Melissa Hogenboom, jornalista da BBC britânica, chamou a atenção para um estudo conduzido por pesquisadores do Chile, dos Estados Unidos e do Reino Unido que analisou quase 8.000 imagens de ressonância magnética de homens e mulheres em 29 países.

Os resultados mostraram que, em países com maior igualdade de gênero, as diferenças na espessura cortical entre homens e mulheres são pequenas ou inexistentes; em algumas regiões do hemisfério direito, as mulheres chegam a apresentar córtex mais espesso. Já em países com maior desigualdade, determinadas áreas cerebrais —especialmente regiões envolvidas em funções emocionais, aprendizagem e processamento visual— tendem a ser mais finas em mulheres do que em homens. Esses achados sugerem que a exposição contínua a ambientes de desigualdade pode produzir efeitos estruturais no cérebro, possivelmente contribuindo para piores desfechos em saúde mental e desempenho educacional entre mulheres em contextos mais desiguais —além de oferecerem evidências iniciais relevantes para políticas públicas que considerem a neurociência inscrita em uma reflexão sobre as desigualdades.

Um efeito nítido da exposição contínua de alerta, da falta de relaxamento, é o cansaço. As mulheres estão muito cansadas há muito tempo e, inclusive por isso, há um discurso patriarcal persistente que visa justificar as mulheres como frágeis, facilmente “abaladas”, incapazes de sustentar pressões cotidianas.

Esse discurso aparece inclusive quando o cansaço feminino se torna objeto de análise médica descontextualizada do social: seria apenas um mero sintoma de uma depressão “natural”, ou então uma falha moral atribuída à má gestão do tempo e à incapacidade de lidar com as exigências do mundo contemporâneo.

Em diálogo com essa pesquisa e com a teoria antidiscriminatória, é possível traçar reflexões semelhantes entre grupos que ocupam posições estruturalmente subordinadas. Em “Por que os Seres Humanos Sofrem” (Autêntica), o professor Adilson José Moreira descreve sua experiência com um cansaço persistente: “Por ser uma pessoa posicionada de forma subordinada em diferentes sistemas de opressão, eu enfrento com frequência uma situação de fadiga emocional (…), produto de uma variedade de experiências estressantes na minha vida cotidiana. Elas não são esporádicas, não são acidentais, não são inconscientes. São experiências nas quais o racismo estrutura as interações no dia a dia, muitas vezes definindo os lugares que posso ocupar na sociedade” (p. 19).

Para mulheres negras, atravessadas pelo racismo e pelo sexismo, o cansaço permeia sua falta de condições materiais de existência. Como disse Toni Morrison, ainda em 1978: “Eu adoraria estar no meio do dia, gastar umas cinco horas nisso e não me sentir culpada por ter tirado um tempo no meio de um emprego integral, pensando nas turnês que eu deveria estar fazendo. (…) Trabalho desde os 12 anos, e eu te digo: estou ficando cansada. Eu gosto e respeito o trabalho que faço. Mas não quero ter que fazer cada discurso, cada aula, tudo o que faço, para garantir a renda extra necessária para chefiar uma família com filhos em crescimento”.

Em futuras colunas, vamos aprofundar essa reflexão. Podemos analisar como o cansaço é tanto um produto pretendido como a matéria-prima para o funcionamento de um sistema patriarcal e racista. Por ora, fiquemos refletindo sobre uma das tarefas políticas mais urgentes do nosso tempo, que é reivindicar o direito ao descanso.

Descansar, aqui, é criar as condições materiais e subjetivas para pensar, criar, encontrar e organizar.



Fonte ==> Folha SP

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