Com humor, nostalgia e uma dose generosa de irreverência, “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena” convida o público a mergulhar na história viva do teatro brasileiro através dos olhos de Amir Haddad e Renato Borghi. Idealizado por Eduardo Barata, o espetáculo é um passeio descontraído por mais de 70 anos de amizade, arte e resistência, onde os dois ícones dividem memórias que vão de causos engraçados a episódios marcantes da cultura nacional. A atmosfera é de intimidade, como se o espectador fosse recebido na sala de estar dos artistas para ouvir histórias de um tempo em que o teatro era sinônimo de revolução.
Com suas personalidades distintas, os dois constroem uma dinâmica cativante. Haddad, diretor sereno e pensador político; Borghi, ator carismático e cheio de energia, transformam o palco em um espaço de cumplicidade. Relembram os tempos áureos do Teatro Oficina, as noites de ensaio sob a tensão da ditadura militar e as trapalhadas da juventude que hoje rendem risadas. Entre uma anedota e outra, surgem trechos de peças históricas, como “O Rei da Vela”, cantorias de músicas de protesto e até imitações de figuras icônicas que cruzaram seus caminhos.
O espetáculo não se leva a sério o tempo todo — e é justamente essa leveza que o torna especial. Como num momento em que Haddad começa a comer em cena enquanto Borghi fala sem parar. A direção de Barata abraça esse tom lúdico, dispensando efeitos grandiosos para valorizar a simplicidade do encontro entre dois amigos que, mesmo com o peso da história nas costas, ainda sabem rir de si mesmos.
Por trás das risadas, porém, há um resgate poderoso. O espetáculo revela como o teatro foi (e segue sendo) uma trincheira de liberdade. Haddad e Borghi narram a perseguição durante o regime militar, os projetos que desafiavam a censura e a crença de que a arte pode mudar o mundo. Sem discursos moralistas, a dupla mostra que resistência também se faz com alegria, inventividade e um pouco de ousadia.
A energia dos dois é o maior trunfo da obra. Mesmo octogenários, Haddad e Borghi transpiram vitalidade, seja ao reproduzir cenas clássicas com a precisão de quem nunca deixou o palco, seja ao brincar com a própria imagem de “lendas vivas”. O espetáculo não quer ser um monumento ao passado; prefere celebrar o presente, mostrando que a chama criativa não se apaga com o tempo. Afinal, como eles mesmo provam, envelhecer no teatro pode significar trocar a urgência da rebeldia pela sabedoria de quem ainda tem muito a contar.
“Livres em Cena” termina como começou: com leveza e afeto. Haddad e Borghi deixam claro que, mais do que colegas de profissão, são companheiros de vida. E se o teatro brasileiro hoje respira liberdade, parte disso se deve a atores como eles, que souberam transformar até os momentos mais sombrios em arte.
Três perguntas para …
… Eduardo Barata
A atmosfera do espetáculo remete a uma conversa íntima na sala de estar. Como estruturou a cena para criar essa sensação de proximidade entre os atores e o público?
Organizei um jantar em minha casa para Renato, Débora [Duboc] e Élcio [Nogueira Seixas], que estavam com uma peça aqui. Convidei também o Amir, com quem trabalho bastante. Sabia que Amir, Renato e Zé [Celso] foram fundadores do Teatro Oficina, mas a imagem da fundação sempre ficou mais vinculada ao Zé, deixando os outros em segundo plano.
Renato e Amir não se viam há muito tempo. Durante o jantar, eles relembraram os tempos do Oficina, os espetáculos, as divergências políticas e artísticas, e como suas vidas seguiram caminhos diferentes depois dali. Aquela conversa me emocionou profundamente. Na mesma noite, propus: “Vou fazer um apelo. Vocês dois no palco – é fundamental para a história do teatro brasileiro!” Eles riram, achando impossível, mas eu já tinha um plano.
Gravei seus depoimentos, montei um vídeo e escrevi um projeto correndo para o “Sesc Pulsar”. Quando conseguimos o patrocínio da Vale, estruturei a dramaturgia. Não queria uma peça de conflito, mas um “documentário cênico”, onde eles mesmos contassem suas histórias, sem interpretar personagens. Como o Amir tem dificuldade para decorar textos, optei por um roteiro livre: os atores teriam os temas, mas poderiam desenvolvê-los naturalmente, tornando cada apresentação única.
Para dar suporte aos dois – considerando a idade e a sensibilidade deles –, convidei Débora e Élcio, que têm forte ligação com Renato. Também incluí dois jovens atores, Duda [Barata] e Máximo [Cutrim], formando três gerações em cena. Realizamos dez encontros artísticos em casa, resgatando memórias e integrando elementos do “Tá Na Rua”.
O resultado foi um espetáculo vivo, onde as histórias se renovam a cada noite, celebrando não só o passado, mas a força do teatro como expressão.
O espetáculo celebra o presente e não só o passado. Como foi trabalhar com dois artistas octogenários que ainda transbordam vitalidade? O que aprendeu com a relação deles com o envelhecimento e a arte?
Com quase 60 anos e uma carreira consolidada como produtor teatral no Brasil — incluindo a presidência de uma importante entidade do setor —, acumulo conquistas, mas também perdas significativas. Há três anos, perdi minha esposa, Françoise Fourton, e esse luto me levou a refletir sobre meu caminho. A convivência com artistas como Amir e Renato, que nunca se acomodaram, me inspirou a romper barreiras e me reinventar, mesmo após décadas de trajetória.
Decidi então mergulhar de cabeça na dramaturgia e na direção, criando um espetáculo que refletisse não só a história deles, mas também minha visão. Escolhi músicas, poemas e referências que dialogassem com suas trajetórias, desde óperas até marchinhas de carnaval. Minha experiência como produtor me ajudou a editar o excesso — cortar cenas que doíam, mas eram necessárias para o ritmo do espetáculo e a atenção do público.
Esse projeto foi mais que um espetáculo: foi uma lição de coragem. Sigo me descobrindo, provando que envelhecer não significa estagnar — e que, no palco da vida, sempre há espaço para uma nova cena.
“Livres em Cena” resgata histórias de resistência dos anos 1960/70. Como tornar esse diálogo relevante para novas gerações que talvez não conheçam o contexto histórico da dupla?
Fiquei surpreso ao visitar salas de aula na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e perceber que muitos estudantes de teatro não frequentam peças nem conhecem ícones como Tônia Carrero ou Bibi Ferreira. Como pode alguém querer ser ator sem viver teatro? É como um jornalista que não lê jornal.
Acredito que a pandemia trouxe um ponto positivo: o teatro chegou à internet, alcançando novos públicos. Paulo Betti, por exemplo, teve espectadoras no Amazonas assistindo a seu monólogo pelo celular — uma primeira experiência teatral para elas. Precisamos usar essas ferramentas digitais para dialogar com os jovens, que consomem cultura de forma diferente.
Para aproximá-los, adoto preços acessíveis: R$ 20 para estudantes de teatro e R$ 40 para a classe artística. Noto que iniciativas como as do Sesc em São Paulo, com formação de público e ingressos populares, fazem diferença. Precisamos furar bolhas, como me ensinaram Amir e Renato, usando redes sociais não só para divulgar, mas para comunicar.
Teatro Adolpho Bloch – rua do Russel, 804 – Glória, Rio de Janeiro. Qui. a sáb., 20h. Dom., 17h. Até 1º/6. Duração: 80 minutos. A partir de R$ 40 (meia-entrada) em ingresso.com
A montagem fica em cartaz no Rio até dia 1º de junho. A produção está em tratativas com o Sesc para levar o espetáculo à capital paulista.
Fonte ==> Folha SP