18 de abril de 2025

O fim do ‘soft power’ norte-americano? – 09/04/2025 – Opinião

O fim do 'soft power' norte-americano? - 09/04/2025 - Opinião

A hegemonia dos Estados Unidos nunca se limitou apenas à sua ampla capacidade econômica e militar (“hard power”), sendo também estruturada por uma rede de organizações governamentais que incorporavam estrategicamente mecanismos de “soft power”. O “soft power” (“poder brando”), discutido pelo teórico de relações internacionais Joseph Nye, busca influenciar indiretamente o comportamento de outras nações e sociedades por meio da atração e persuasão, em vez do uso da força e da coerção.

Na Guerra Fria, por exemplo, os Estados Unidos obtiveram sucesso em exercer o seu “soft power” sobre diversos grupos da sociedade civil presentes do outro lado da “Cortina de Ferro” por meio da estruturação da U.S. Agency for Global Media (USAGM). Com recursos aprovados pelo Congresso, ela financiava os programas —inicialmente de rádio e, posteriormente, de TV, digital e mídia social— do broadcast público “Voice of America” (1947) e das organizações privadas sem fins lucrativos “Radio Free Europe” (1950) e “Radio Liberty” (1953). Recentemente, a divulgação de documentos classificados da CIA indica que a “Radio Free Europe” teve um papel central na Revolução Húngara (1956). Embora ainda haja controvérsias sobre a atuação da agência de inteligência dentro desse meio de comunicação, a documentação histórica revela a importância dessa estrutura midiática no “soft power” norte-americano.

Entretanto, não é essa a visão da atual gestão de Donald Trump, que decidiu congelar o financiamento das agências oficiais de notícias públicas e privadas dos Estados Unidos. Enquanto a “Radio Free Europa” e a “Radio Liberty” conseguiram, por meio de uma medida judicial, impedir o seu fechamento, a “Voice of America” (VOA) teve as suas portas fechadas logo após a publicação do decreto presidencial, colocando seus 1.300 funcionários em licença remunerada. A VOA, uma agência de caráter público que nasce para combater o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, contava com aproximadamente 360 milhões de ouvintes e transmitia em mais de 50 idiomas por diversas plataformas.

Assim como outras agências importantes para a propagação do “soft power” norte-americano, a VOA era uma organização independente, semelhante a uma autarquia, sobre a qual o Executivo não detinha poderes para interferir diretamente na gestão e na definição das pauta. Ainda assim foi apoiada e reconhecida por todos os presidentes dos EUA anteriores a Trump. Segundo Mark Pomar, ex-diretor da VOA, a agência de notícias sempre foi vista como um instrumento da política externa do país, sendo normalmente alvo de ataques externos, especialmente de governos autoritários que impediam o acesso à suas plataformas ou perseguiam os seus colaboradores.

Trump, no entanto, já demonstrava desconforto com a VOA desde o seu primeiro mandato, quando a agência optou por utilizar dados científicos para informar seus ouvintes sobre os riscos da pandemia de Covid-19. Em 2020, o então presidente afirmava que “se você ouviu o que está saindo da “Voz da América”, é nojento. As coisas que eles dizem são nojentas para o nosso país”, pois a seu ver a VOA não passava de mais uma ferramenta de propaganda chinesa sobre a pandemia. Dessa forma, o decreto presidencial que leva ao encerramento das atividades da agência é uma continuidade da visão de gestão do republicano desde sua primeira passagem pela Presidência.

Agora, com maior apoio popular, Donald Trump tem sido capaz de aplicar suas propostas políticas de maneira mais radical. Kari Lake, nomeada pelo presidente para gerir a U.S. Agency for Global Media, que repassava a VOA um orçamento de US$ 267 milhões anuais, defendeu seu fechamento ao declarar que havia “riscos de segurança nacional. A podridão é tão ruim que é como ter um peixe podre e tentar encontrar a pequena porção que você pode comer. É irrecuperável agora”.

Por um lado, os meios de comunicação tradicionais, inclusive aqueles não pertencentes ao governo dos Estados Unidos, têm sido amplamente atacados por Donald Trump, como no banimento dos jornalistas da Associated Press da Casa Branca. Por outro lado, as redes sociais tais como X, Facebook, Instagram, YouTube e WhatsApp têm recebido apoio direto dessa gestão, como na aprovação de um pacote de US$ 500 bilhões para as empresas de tecnologia, bem como na permissão e no incentivo do encerramento das boas práticas de moderação de conteúdo e ao fechamento de programas de diversidade, equidade e inclusão.

O apoio às big techs, com a desregulamentação na produção de informação e conhecimento, indica que há uma substituição na maneira na qual os EUA devem propagar os valores conservadores e cristãos estabelecidos pela nova gestão e previstos no “Project 2025”. Oposto às ideias de democracia, direitos humanos e liberdade civil, o presidente norte-americano repassa o controle de ferramentas do “soft power” aos barões da tecnologia que, em nome da “liberdade”, garantem a propagação de fake news, assim como a criação e manutenção de grupos extremistas dentro da rede social.

Essa transformação na estrutura de comunicação dos Estados Unidos redefine o papel do Estado-nação, assim como a maneira que ele se relaciona no cenário global. Sem mais controle direto sobre o “soft power”, em nome da “liberdade”, o governo de Donald Trump coloca em xeque a legitimidade dos meios de comunicação tradicionais, criando um cenário preocupante para toda a sociedade ocidental.

Episódios como aquele narrado na série “Adolescência (Netflix) ilustram o poder de manipulação e persuasão das redes sociais, que hoje são capazes de conquistar mentes e corações, bem como reorganizar completamente o “modus operandis” da diplomacia estadunidense.

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Fonte ==> Folha SP

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