Imagine que você tem de decidir o que fazer perante uma pessoa no auge de um transtorno delirante, que fantasia e alucina. A pessoa pode achar que é Napoleão ou a maior beldade do mundo —para o caso, tanto faz. A sua reação pode ser tentar persuadi-la da verdade ou simplesmente dizer-lhe que está louca. Mas, se se tratar de alguém próximo, as coisas não são assim tão simples.
Há muitas situações em que a escolha é “gerenciar o delírio”; não confrontar diretamente o fantasista com as suas loucuras, mas também não fingir que acredita nelas.
A ligação entre delírio e tirania não é de hoje; é de sempre. De Nero a Trump, nunca passou muito tempo sem que a humanidade tivesse de se perguntar: e se o imperador estiver louco? A diferença é de escala e de densidade. Aqui, a família e os amigos do fantasista são nações, sociedades, o mundo todo. Por outro lado, não há como negar ao louco que ele tem uma certa razão: ele é de fato o imperador, o homem mais poderoso do mundo, todos falam dele, o temem, o reverenciam, e por aí afora.
Ele não tem só mania de grandeza —foi o mundo que o consignou a uma situação em que seria difícil a qualquer um de nós manter-se com os pés no chão. Além disso, uma das táticas dos tiranos sempre foi o fingir ser mais loucos do que são —Trump chegou a teorizar sobre como fazer-se de louco lhe dá o poder da imprevisibilidade—, e deixar-nos na dúvida, no receio, na hesitação sobre o verdadeiro grau da verdadeira loucura, para depois observar com diversão os opositores obcecados e os aliados ajoelhados.
Lá Fora
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Ao resto do mundo, resta “gerenciar o delírio”. Fazer de conta que não se dá grande importância às maiores loucuras: Trump diz que quer anexar a Groenlândia ou o Canadá? Mette Frederiksen ou Mark Carney dizem polidamente que o seu território não está à venda e depois esperam que o assunto passe.
Outra das opções é afagar-lhe o ego, como tem feito Mark Rutte, o secretário-geral da Otan. Ou ser paciente, construtivo e fazer de conta que lhe dá uma vitória, tática na qual se tem especializado a presidente do México, Claudia Sheinbaum, e que foi seguida por vários países nas negociações tarifárias com os Estados Unidos.
O problema é que assim acabamos todos envolvidos no mesmo delírio, todos tentando adivinhar quem acredita no quê. A farsa global em que estamos metidos, mesmo que não seja historicamente inédita, torna insustentável qualquer ordem global digna desse nome. Tudo é arbitrário, prepotente e discricionário —até o momento em que o princípio da realidade acabar por se impor.
A grande questão é: por que escolhem nações e blocos regionais inteiros prescindir da sua dignidade ao participar da farsa? Não há qualquer obrigação de “gerenciar o delírio”, muito menos participar dele, esperando que passe.
Pelo contrário; o mundo pode e deve seguir adiante, construindo regras e instituições internacionais razoáveis e realistas, ou reforçando as que já existem, independente dos humores de tiranos ou das pressões da potência hegemônica. Se um dia, após Trump, os EUA quiserem se juntar, serão bem-vindos.
Fonte ==> Folha SP