Um aliado de Donald Trump descreveu antes mesmo da posse o que achava que seriam os primeiros dias da nova administração: “choque e pavor” (“shock and awe”). É a mesma expressão usada para a operação militar dos Estados Unidos no Iraque, em 2003.
A percepção logo se confirmou: já nas primeiras horas de sua administração, Trump assinou dúzias de decretos, em uma verdadeira “blitzkrieg” (“guerra relâmpago”, em alemão) contra forma e conteúdo da democracia norte-americana. Não se trata mais de ameaça, porque a ofensiva já está em curso.
É um erro supor que não há risco democrático porque Trump será em algum grau controlado por instituições como o Judiciário ou pelos próprios limites impostos pelas dinâmicas da economia e da geopolítica. A astúcia de líderes autocratas contemporâneos está em jogar com esses controles, desgastando ao máximo a complicada maquinaria institucional das democracias até que os valores em nome dos quais a máquina operava já não possam mais ser reconhecidos. Há estratégias diversas para isso, além do conhecimento acumulado pelas experiências internacionais.
A ofensiva trumpista nestes primeiros dias de governo, variada e audaciosa, é um caso de manual. O presidente se fartou em quase todo o cardápio de mecanismos institucionais de erosão democrática. Há um conjunto de medidas que enfraquece o serviço público federal, congelando novas contratações e criando categorias de servidores públicos sem garantias profissionais para atuação independente.
Outro reverte a incipiente institucionalização de uma economia verde e retira os Estados Unidos do Acordo de Paris. Um terceiro ataca minorias com um texto digno da melhor literatura distópica: afirma estar “defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurando a verdade biológica para o governo federal”.
Um enorme esforço de normalização do extraordinariamente equivocado ou imoral poderia atribuir risco democrático zero a medidas desse tipo. Mas alguns decretos específicos tornam especialmente difícil negar que a “blitzkrieg” trumpista é excepcional em sua ambição autoritária.
O decreto que nega cidadania a nascidos em solo norte-americano de pais imigrantes não documentados é uma provocação clara ao sistema de justiça. A 14ª Emenda não deixa dúvidas sobre a cidadania definida pelo território, e não pela ascendência, e esse é um pilar sobre o qual os Estados Unidos construíram sua identidade como República. Que esse decreto já tenha sido derrubado judicialmente (em primeira instância) é apenas o prenúncio da enorme conflituosidade que o governo Trump buscará instaurar na relação com o Poder Judiciário. Eventualmente, tentará se valer da maioria conservadora na Suprema Corte para conferir verniz de legalidade ao que não tem legitimidade constitucional e assim consolidar ainda mais a novilíngua jurídica que emprega.
Outro decreto é, do ponto de vista jurídico, ainda mais chocante. Com o objetivo declarado de “acabar com a instrumentalização do governo federal“, promove basicamente o contrário. Dá como certo, antes de qualquer investigação, que houve corrupção na administração anterior e ordena à gestão atual que revise “as atividades de todos os departamentos e agências que aplicam medidas de responsabilização civil e criminal” para encontrar irregularidades e reportá-las ao presidente. Lembra os piores tipos de totalitarismo, em que os próprios fatos estão sob controle do Estado.
Designar de “democrático” certo regime de poder não é simplesmente apontar a ocorrência de eleições diretas ou poderes funcionando nos limites formais. A democracia existe para efetivar máxima inclusão na cidadania, pluralismo na aceitação de formas diversas de vida e responsabilidade de quem está no poder diante do público. Todos esses valores são diretamente atacados pela “blitzkrieg” trumpista.
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Fonte ==> Folha SP