Pela primeira vez, a Folha publicou em sua capa anúncio de uma plataforma de “acompanhantes”. O termo é um eufemismo para prostituição, e a suavidade do texto do anúncio chegou a fazer leitores tomarem “acompanhante” por cuidador de idosos.
Mas o cabeçalho do jornal era a moldura de uma propaganda institucional da Fatal Model, empresa que reúne anúncios e vídeos de profissionais do sexo em sua plataforma. Ganha dinheiro vendendo aos profissionais o destaque desses anúncios e “conteúdo premium” aos clientes.
A Fatal Model vem firmando patrocínios milionários no futebol, modelo dominado pelas “bets”. As investidas renderam à empresa contratos e exposição nas séries A, B e C do Campeonato Brasileiro. A cartada mais recente foi a oferta de R$ 250 milhões pelos “naming rights” do estádio do Athletico-PR, segundo o jornal Lance.
Enquanto a plataforma esbanja dinheiro, a crise do modelo de negócios do jornalismo virou regra. Vender espaço às marcas tornou-se mais difícil. Recusar uma boa oferta (ou mesmo uma mais ou menos boa) parece uma possibilidade distante. Além disso, o jornal está vacinado contra eventuais espantos morais: ainda que em escala menor, os classificados com os quais os veículos ganharam dinheiro em décadas passadas tinham suas seções de “acompanhantes” e “massagistas”.
A peça da Fatal Model na Folha destacava dados sobre a atividade sexual remunerada sem mencioná-la explicitamente e fazia alertas contra o preconceito. “1.400.000 mães, filhas, irmãs e esposas. Esse é o número de profissionais que trabalham como acompanhantes no Brasil. Está na hora da gente falar sobre isso.”
O pretexto era chamado de “Dia da Acompanhante”, 2 de junho, Dia Internacional da Prostituta ou Dia Internacional da Trabalhadora Sexual. O site indicado no anúncio não tinha link de conteúdo sexual, só nome e endereço da plataforma.
Não resta dúvida da respeito da necessidade de discussão sóbria sobre preconceito e dignidade (embora a origem do número apresentado no anúncio, 1,4 milhão, não ficasse clara). Em suas redes, a Fatal Model comemorou a “capa histórica”. Mas a questão é outra.
O Ministério Público de Alagoas e o de SP, além do Ministério Público Federal, agem contra a difusão da marca em jogos e estádios.
O conteúdo jornalístico da Folha, porém, tem sido no geral condescendente com a plataforma. “O rufianismo (…), que é o aliciamento, exploração sexual e participação nos lucros, é ilegal. No caso do Fatal Model, a companhia não está enquadrada na prática”, definiu de modo peremptório o jornal em reportagem de 2023. Em outras ocasiões, já noticiou que o site cortara o patrocínio do podcast Flow após o apresentador Monark defender a existência de partido nazista e anunciou a chegada da plataforma à Europa.
Enquanto isso, veículos que publicaram críticas à empresa se viram envolvidos em polêmicas.
Após questionamento feito pelo ICL Notícias, a Fatal Model enviou à sede do site um caminhão e notificações para retirada de conteúdo. Entidades jornalísticas condenaram o que foi percebido como tentativa de intimidação e censura. O site Repórter Brasil relatou ter sofrido ataque digitais após reportar críticas de profissionais do sexo à plataforma.
Para Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta (que combate violência sexual contra crianças e adolescentes e também é anunciante da Folha), houve “desconforto” ao ver “o jornal ‘encapado’ com uma propaganda de site de prostituição”.
“Aqui não vai nenhum julgamento moral de quem, por opção ou falta de, está exercendo esse trabalho. Mas nos incomoda muito que pessoas estejam ganhando dinheiro em cima disso”, afirma ela.
A Fatal Model declara “fornecer segurança, qualidade e liberdade” a acompanhantes e clientes.
A Folha argumenta que o objetivo do anúncio não é vender serviço de acompanhantes, e sim abrir a discussão sobre respeito, e que a publicação passou por avaliação jurídica. O jornal afirma que não restringe anunciantes, desde que não pertençam a segmento de mercado vedado em lei ou pelas normas éticas do Conar (Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária).
“O problema da violência sexual contra crianças e adolescentes, assim como a exploração sexual deste grupo, é gigante, e esses sites não ajudam em nada, sendo muitas vezes gatilho de violência”, diz Luciana Temer.
Se a capa é histórica para a Fatal Model, não deixa de sê-lo também para a Folha, tanto no ineditismo quanto na discussão que impõe.
Fonte ==> Folha SP